num espaço que não me pertence. num mundo que não é o meu. eu. no mundo dos outros.
25 fevereiro 2010
felicidade
24 fevereiro 2010
boa noite
23 fevereiro 2010
flechas
21 fevereiro 2010
domingo
20 fevereiro 2010
sabedoria
19 fevereiro 2010
banalidade
Vejo-a entrar, saia e casaco a condizer, cores neutras, despercebidas, sapato de meio salto, mala pendurada nos braços erguidos que seguram o tabuleiro. Vejo-a caminhar com o corpo hirto, teso, controlado e desconfortável. A cabeça baixa, que a deixa ver apenas o soalho silencioso. Vejo-a percorrer os passos contados e recontados ao milímetro. A timidez facilmente conduz à obsessão. Sei que decorou cada um dos movimentos como se qualquer falha tivesse a capacidade de reforçar o embaraço que, inevitavelmente, já sente.
Vejo-lhe o cabelo imaculadamente penteado. Os fios esticados e reluzentes, presos com preceito numa espécie de colcheia. Aposto que o cheiro não é de flores. Laca. Necessária e antiquada. Vejo-lhe a pele mimada de adolescente, isenta de marcas ou sinais. Tão perfeita e ausente de vida quanto a virgindade do corpo já pouco jovem. Miro-lhe os olhos castanhos, banais, maquilhados sem garra, sob umas sobrancelhas meticulosamente arranjadas. E os lábios com um brilho tosco. As mãos são também de princesa. Brancas. Suaves. Sem vestígios de emoção. Anéis caros para ocultar a solidão. E, claro!, um verniz básico, daqueles que não transmite estados de alma ou de ser. Daqueles cuja ausência nem sequer se notaria.
Nunca a vira antes. Mas sei que são raras as vezes em que se faz acompanhar. Hoje é uma dessas excepções. Hoje traz aquela colega de trabalho ou aquela amiga da conhecida que encontrou por acaso ou a senhora com quem, acidentalmente, travou conversa e que agora convidou, sem ponderação, para almoçar. Hoje traz alguém para ocupar o vazio do espaço que a circunda e a engole. Sei que ainda não são amigas pelas conversas de circunstância e pela simplicidade dos assuntos. Sei que acompanhada se sente menos presa e sufocada. Hoje pode falar. Hoje tem quem a ouça. Conta como não tem tempo para estar descansada em casa por ter sempre a roupa para pôr e tirar da máquina, para engomar e dobrar, para empilhar e guardar. Conta como não tem tempo para sair e confraternizar por ter sempre o que fazer em casa. Há a roupa para pôr e tirar da máquina, para engomar e dobrar, para empilhar e guardar.
Nunca antes a vira. Mas imagino que tenha uma profissão rotineira. Talvez organize papéis num arquivo municipal, numa conservatória ou num registo civil. Talvez organize papéis, silenciosa e sistematicamente, num outro sítio qualquer.
Se a refeição correr bem, a colega ou a amiga da conhecida ou a senhora com quem travou conversa e que convidou para almoçar entra, sem perturbações, no escasso grupo a que chama de amigos. Torna-se importante e imprescindível.
Nunca lhe ouvi o nome. Mas vi-lhe a fragilidade. Há pessoas assim. Transparentes. Que anseiam o abandono da solidão e forçam, numa ingenuidade arrepiante, a existência de uma vida social.
Sei que hoje ela sorrirá ao adormecer, numa felicidade efémera. Hoje sorrio também eu por ela, na minha tentativa vã de expulsar os reflexos da mente que se espelham no rosto.
16 fevereiro 2010
asas
Sacudi o caruncho do músculo que bombeia cá dentro a vida. Fi-lo sem zelo ou pudor. Agitei-o. Abanei-o. Despertei-o, sem benevolência. Arranquei-lhe a película de pó que o ia protegendo e mantendo inteiro, salvaguardando os pedaços ainda virgens. Lavei-lhe a cara e limpei-lhe o rosto. Deixei-o quase como novo. Bonito. Apresentável. Funcional. Por fim, serrei-lhe as correntes e cortei-lhe as mordaças. Vive.
Agora tenho-o aqui. Pousado na pele grossa de duas mãos. As mesmas que o aconchegaram na hora de adormecer. Agora vejo-o acordar. Atordoado. Mas cheio de vontade. Espontâneo. Mas propenso aos vendavais e às amplitudes térmicas. Descuidado. E, por isso, sujeito aos percalços e aos solavancos. À rigidez dos embates e das quedas. À violência das unhas que rasgam e ferem.
11 fevereiro 2010
Fernanda
09 fevereiro 2010
plágio
06 fevereiro 2010
flash
03 fevereiro 2010
chuva
01 fevereiro 2010
limiar
Há dez anos, disseram-me pela primeira vez que, assim, eu não iria longe. Eu respondi que apenas assim chegaria a algum lado. Disseram-me que em nada adiantava lutar contra a maré. Que de nada servia lançar sopros contra tempestades. Que jamais eu mudaria o mundo. Que jamais venceria.
Nesse dia não baixei os braços. Ergui-os mais alto. Nesse dia não cessei guerras. Tive medo de que, se o fizesse, o mundo ruísse sem conserto. Achei que a liberdade e a justiça eram os únicos valores que justificavam uma luta. E abri-a em pequenos gestos. Aqueles que cabiam no apertar de uma mão, ainda imatura.
Há dez anos, retorqui. Se um dia tivesse de voltar costas à minha verticalidade, que fosse por um grande motivo. Não por boas notas na escola. Não por uma consequente entrada facilitada na universidade. Não por um posto de trabalho cujos fundos revertiam apenas para o meu divertimento. Não por um futuro que não sabia se teria.
Os anos passaram e eu julguei-me curada. Sabia agora que não mudaria o mundo. Se dei por findas as batalhas? Parece que não. Talvez seja uma ideologista. Talvez viva envolta em valores que já não existem. Talvez teime em acreditar. Talvez seja apenas uma sonhadora. Inconformada. Incompreendida. Iludida. Ou talvez seja apenas estúpida. Quem quer saber, afinal?!
Hoje os valores mantêm-se. A verticalidade é a mesma. Mas eu sou diferente. Ou deveria sê-lo. Já não tenho 15 anos. Já não ando no liceu. Já não organizo campanhas de recolha de fundos para Timor. Já não faço voluntariado com crianças e idosos. Hoje trabalho. Mais do que nunca, como é suposto. Hoje sou independente, como é suposto. Faço o que gosto e para o qual me formei, como é suposto. Mas não consigo parar de confrontar o mundo com o que julgo ser o correcto. Com o que eu acho que é correcto. E não consigo ser inteligente o suficiente para fazer o que me mandam sem misturar trabalho com integridade. Merda. Outra vez.