25 fevereiro 2010

felicidade

Hoje não troco os passos na rua. Não tropeço nas pernas que mal coordeno. Nem lanço ao chão os joelhos frágeis e flagelados. Hoje não preciso de me forçar a erguer. Não caio. Navego por entre os outros. Flutuo. Desamparo a tentativa inútil de controlar as mãos trémulas e a oscilação do ar entre as vértebras. Levito em mim sem intuitos de me prender. Não domino os músculos do rosto. Deixo-os contorcerem-se em euforia infantil e desmedida. Abandono o corpo às suas vontades. Hoje deixo-me livre, incapaz de me suster.
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O mundo parece organizar-se em gavetas, conformes e equitativas, onde se compartimentam e catalogam as vivências. Hoje arranquei-as a todas das prateleiras. Que se lixem as convenções! Esvaziei-me de histórias para dar espaços às que hei-de escrever.
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Ouvi dizer que o sonho fica sempre do outro lado do caminho a que nunca chegamos. Há os que o perseguem ao longo de toda uma vida. E depois há os outros. Os que esbarram com ele acidentalmente. Obra do acaso - senhor das minhas verdades e mentor das minhas acções.
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Hoje não me limito em emoções e sensações. Não me confino entre linhas e categorias. Não me detenho em escombros. Não me barro em pensares. Hoje não me prendo. Hoje não. Já o fizeram por mim, sem o saber. Já agarraram a essência mais inata do que sou. Hoje já há outros poros entranhados nos meus. A alimentá-los. A confortá-los. A complementá-los. A dar-lhes vida. E é aí, nessa réstia de consciência, que percebo que os sonhos estão mesmo aqui ao lado.

24 fevereiro 2010

boa noite

Bastou uma fresta entreaberta nas minhas convicções - um instante ímpar de hesitação - para que entrasse, arrebatador, e me corrompesse. Sucumbi ao caos que arde lentamente para lá destas paredes, que nada têm de meu para além de mim.
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Sinto-o cá dentro agora. A dividir comigo a amplitude atmosférica do exílio. Sinto-o aqui, debruçado sobre o que sou. A envolver-me. A consumir-me.
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Tenho o mundo descompensado entre os outros. Às avessas. E só porque sim, contrario a tendência e recolho-me hoje mais cedo. Não alinho no jogo. Não alimento o desafio. Não hoje.

23 fevereiro 2010

flechas

Diria o meu pai que me apresentava mais bruta que uma muralha de casas - sem estuque de delicadezas ou coerências. Diria a minha mãe estar perante a destravada do costume - uma carga de cavalaria tão destemida quanto inconsciente. Diria a minha avó que andava com a lua - nesta constante oscilação de humores. E o meu avô, sábio como todos os avôs, que estava instavelmente apaixonada. É assim que descrevem lá para os lados do Alentejo aquele estado indescritível de melancolia, agonia, inquietação, preocupação e desassossego, mesclado de uma paciência exaustiva, disparada num único sentido. No inverso desabam todos os dejectos, tal calamidades, que contornam esta aura de fictícia e efémera libertinagem mental.
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Desanquei o mundo na pele de um único ser. Gritei-lhe aos ouvidos na ânsia de que a mensagem atingisse mais do que o cérebro. Estremeci-lhe o universo. Abanei-lhe o cosmos. E só não lhe espanquei a alma porque não o queria realmente morto. Apenas gravemente ferido. Combalido o suficiente para acordar para a vida.
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Perdi todas as palavras que tinha guardadas. Atei-as umas às outras como um rastilho. Fi-las explodir abruptamente no rosto de outrem. Berrei verdades torturadoras. Maquiavélicas. Provoquei o desmoronamento de uma avalanche de franqueza que mal se aguentava quieta. Disse tudo como os loucos, sem pesares ou amedrontamentos.
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Deixei-me de amizades e protocolos. Deixei-me de favores, cerimónias ou etiquetas. Fiz fugir a tristeza, acobardada, ao sobrepor-lhe uma batalha unilateral de raiva. Sabia que a mais fraca acabaria por ceder. E cedeu. Não fui compreensiva. Não fui esquiva. Não fui companheira. Não fui amiga. Não tive paciência. Fui absurda e conscientemente má. Ofendi. Magoei. Humilhei. Maltratei. Se me arrependo? Nem um pedacinho.
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Por vezes são os piores sentimentos que ajudam a despertar os outros - os importantes. Por vezes é preciso um temporal de crueldade para fazer acordar os estupidamente adormecidos. É preciso guerra para eliminar a lamúria e os lamentos. E assim foi. A minha desumanidade, afinal, deu frutos.
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Agora só preciso de alguém com uma atrocidade tão genuína quanto a minha para me temperar de lucidez o dia em que hibernar, sonâmbula.

21 fevereiro 2010

domingo

É domingo. Aquele fatídico dia da semana pelo qual nutro um sentimento ambíguo de melancolia e engano. É domingo. E para que o dia se tornasse menos dúbio e turbulento deixei pronto, lá pela madrugada, o trabalho sempre acumulado que não pára de chegar. É domingo. E tive o chefe a telefonar logo pela manhã.
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Mandei-te um e-mail. Preciso que respondas.
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É domingo. Tiro o corpo sonolento da cama e arrasto-me até ao computador. Para quê mandar mensagens electrónicas se me vai fazer a merda do telemóvel tocar na mesma? Evado-me do leito onde abandono, nu, o gajo que, por estes dias, divide comigo mais do que os lençóis. Respondo ao correio. Mensagem enviada. É domingo, porra.
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Foge-me o gajo do quarto. Assenta a má disposição nos meus ombros, conflituoso e inflexível. É domingo, caramba. Mas nesta casa não há ponteiro a dividir as obrigações do lazer. Nem ao domingo.
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Há os amigos convocados à espera do café. Há os outros a marcar encontros ocasionais. Há a repetição das putas das mensagens a cair no telefone. Tenho saudades. Andas fugida. Desaparecida. Café? Cafézito? O que é que fazes? Porra. É domingo e eu não gosto de compromissos ou horas marcadas.
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Há outra vez o gajo. Ainda o mesmo. A bater a porta. A sair desenfreado sem pingo de compreensão. A dar um falso espaço. Um falso tempo. Mais a si do que a mim. Porque é domingo e esta merda não é paga. Porra. É domingo e eu já mandava esta gente toda à fava.

20 fevereiro 2010

sabedoria

Voltei a ler as crónicas de Miguel Esteves Cardoso. Apaixonei-me há anos pelos seus artigos, pela magia que incute a cada texto, pela simplicidade das palavras, pela naturalidade dos temas, pela ironia de algumas frases, pela verdade implacável de tantas outras.
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Lembrei-me dos tempos do DNa, o magnânime suplemento que acompanhava o Diário de Notícias à sexta-feira. Lembro-me de o comprar pelas primeiras horas do dia. Para apenas o consumir nas manhãs ensolaradas de sábado, na esplanada do costume frente à Ria Formosa.
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Já Pablo Neruda dizia ao seu carteiro que as palavras eram como os beijos. Deviam ser degustadas com suavidade. Sugadas com delicadeza. Também eu degustava o DNa com todo o esplendor, sugando cada um dos textos, naquele que se adivinhava um dos momentos mais agradáveis da semana. Saboreava-o com requinte, elevando aquele estranho instante de deleite ao expoente máximo da satisfação. Plenitude.
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Um dia destes quis acolher-me do caos frenético e descontrolado que me circundava. Abri o Público online na tentativa bem sucedida de me refugir na informação matinal. Dei com o "Obrigado, namoradas" do MEC, escrito em homenagem às celebrações dos apaixonados.
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Diz ele que "o amor é um castigo; é um desespero; é um medo. O amor vai contra todos os nossos instintos de sobrevivência. Instiga-nos a cometer loucuras. Instiga-nos a comprometermo-nos. Obriga-nos a cumprir promessas que não somos capazes de cumprir. Mas cumprimos."
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E hoje nenhuma descrição me parece mais fidedigna. Hoje embriaguei-me ainda mais de música. Asfixiei-me de trabalho. Degolei-me de confraternização. Socorri-me de humor. Instiguei-me à ausência de pensar. Forcei-me à libertação e à alienação. Devorei-me de prazer num concerto solitário de Mazgani. Mas, apesar da azáfama que preencheu todos os minutos deste interminável dia, não consegui afugentar a brutalidade da incoerência que me vai mastigando.

19 fevereiro 2010

banalidade

Vejo-a entrar, saia e casaco a condizer, cores neutras, despercebidas, sapato de meio salto, mala pendurada nos braços erguidos que seguram o tabuleiro. Vejo-a caminhar com o corpo hirto, teso, controlado e desconfortável. A cabeça baixa, que a deixa ver apenas o soalho silencioso. Vejo-a percorrer os passos contados e recontados ao milímetro. A timidez facilmente conduz à obsessão. Sei que decorou cada um dos movimentos como se qualquer falha tivesse a capacidade de reforçar o embaraço que, inevitavelmente, já sente.

Vejo-lhe o cabelo imaculadamente penteado. Os fios esticados e reluzentes, presos com preceito numa espécie de colcheia. Aposto que o cheiro não é de flores. Laca. Necessária e antiquada. Vejo-lhe a pele mimada de adolescente, isenta de marcas ou sinais. Tão perfeita e ausente de vida quanto a virgindade do corpo já pouco jovem. Miro-lhe os olhos castanhos, banais, maquilhados sem garra, sob umas sobrancelhas meticulosamente arranjadas. E os lábios com um brilho tosco. As mãos são também de princesa. Brancas. Suaves. Sem vestígios de emoção. Anéis caros para ocultar a solidão. E, claro!, um verniz básico, daqueles que não transmite estados de alma ou de ser. Daqueles cuja ausência nem sequer se notaria.

Nunca a vira antes. Mas sei que são raras as vezes em que se faz acompanhar. Hoje é uma dessas excepções. Hoje traz aquela colega de trabalho ou aquela amiga da conhecida que encontrou por acaso ou a senhora com quem, acidentalmente, travou conversa e que agora convidou, sem ponderação, para almoçar. Hoje traz alguém para ocupar o vazio do espaço que a circunda e a engole. Sei que ainda não são amigas pelas conversas de circunstância e pela simplicidade dos assuntos. Sei que acompanhada se sente menos presa e sufocada. Hoje pode falar. Hoje tem quem a ouça. Conta como não tem tempo para estar descansada em casa por ter sempre a roupa para pôr e tirar da máquina, para engomar e dobrar, para empilhar e guardar. Conta como não tem tempo para sair e confraternizar por ter sempre o que fazer em casa. Há a roupa para pôr e tirar da máquina, para engomar e dobrar, para empilhar e guardar.

Nunca antes a vira. Mas imagino que tenha uma profissão rotineira. Talvez organize papéis num arquivo municipal, numa conservatória ou num registo civil. Talvez organize papéis, silenciosa e sistematicamente, num outro sítio qualquer.

Se a refeição correr bem, a colega ou a amiga da conhecida ou a senhora com quem travou conversa e que convidou para almoçar entra, sem perturbações, no escasso grupo a que chama de amigos. Torna-se importante e imprescindível.

Nunca lhe ouvi o nome. Mas vi-lhe a fragilidade. Há pessoas assim. Transparentes. Que anseiam o abandono da solidão e forçam, numa ingenuidade arrepiante, a existência de uma vida social.

Sei que hoje ela sorrirá ao adormecer, numa felicidade efémera. Hoje sorrio também eu por ela, na minha tentativa vã de expulsar os reflexos da mente que se espelham no rosto.

16 fevereiro 2010

asas

Sacudi o caruncho do músculo que bombeia cá dentro a vida. Fi-lo sem zelo ou pudor. Agitei-o. Abanei-o. Despertei-o, sem benevolência. Arranquei-lhe a película de pó que o ia protegendo e mantendo inteiro, salvaguardando os pedaços ainda virgens. Lavei-lhe a cara e limpei-lhe o rosto. Deixei-o quase como novo. Bonito. Apresentável. Funcional. Por fim, serrei-lhe as correntes e cortei-lhe as mordaças. Vive.

Agora tenho-o aqui. Pousado na pele grossa de duas mãos. As mesmas que o aconchegaram na hora de adormecer. Agora vejo-o acordar. Atordoado. Mas cheio de vontade. Espontâneo. Mas propenso aos vendavais e às amplitudes térmicas. Descuidado. E, por isso, sujeito aos percalços e aos solavancos. À rigidez dos embates e das quedas. À violência das unhas que rasgam e ferem.

Um dia voltarei a guardá-lo. Voltarei a protegê-lo. Entre os ossos e o ócio. Para que se acomode. Para que sossegue. Para que recupere, resguardado. Mas hoje deixo que palmilhe esquinas e calçadas. Que corra todos os riscos a que tem direito. Hoje dou-lhe a sua dose de liberdade. Sabendo que um dia – outro, que não o de hoje – o irei recolher, anestesiado e cansado.

11 fevereiro 2010

Fernanda

Na imparável dinâmica da vida abundam os encontros e os desencontros. Acasos. Arbitrariedades. Contornos. Partidas e regressos, fortuitos e acidentais. Os afastamentos são tão fatais quanto previsíveis. Inconscientes ou ingénuos, pouco importa.
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Rio-me num silêncio introspectivo das surpresas agradáveis que talham o destino. E das desventuras incongruentes dos dias comuns. Sabe bem ver o mundo à distância da memória.
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Hoje reencontrei a Dona Fernanda sem que ela me reencontrasse a mim. Não me incomoda que assim seja. Vi a Dona Fernanda. Mais jovem. Mais bonita. E certamente mais mulher do que algum dia foi. Sei que mudou de emprego há anos. Talvez já se tenha reformado. Talvez tenha mudado de marido ou arranjado um amante. Está mais jovem. Mais bonita. Mais mulher. A paixão tem destas coisas. Estende ao rosto a euforia desmesurada que se alastra no peito.
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Lembro-me tão bem dela quanto de mim. Lembro-me das primeiras conversas, que nada tinham de acidental. Da linguagem carregada de simplicidade e humor. Desconcertante mas agradável. Sempre gostei da Dona Fernanda.
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Aos 19 anos mudei a vida para uma cidade que nunca antes visitara. Foi a ponte entre o conhecido e o desconhecido quem ditou a minha escolha. A certeza de as gentes serem do Sul acentuou a implacável decisão.
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Cada chegada implica a procura de um refúgio. O meu foi aquela gelataria junto à rotunda, entre a casa e a universidade, descoberta na primeira noite de liberdade maioritária. Quero um café com natas. E depois um café cheio e um copo com gelo. Se faz favor.
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Centrada na decoração exuberante que ela própria criara, a Dona Fernanda sorria ininterruptamente, orgulhosa do seu ofício. Às vezes, lançava pragas ao patrão e aos clientes mais incautos, numa ladainha repleta de vocabulário poético. Chupe, chupe, menina, antes que derreta.
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Perguntou-me de onde vinha. Por que vinha. Perguntou-me pelos namorados, pelos rapazes, pelos namoricos. Eram a sua perdição. Nunca soube o meu nome. Sempre fui a menina de Beja. Outras vezes a menina de Beja, dos cafés com natas e com gelo. Topping de morango. Se faz favor. Chupe, chupe, menina, antes que derreta.
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A Dona Fernanda gostava de mim. Passava-me o gelo às escondidas numa chávena grande de chá para não ter de mo cobrar. O patrão dizia que, quem quer beber fresco, tem de pagar mais. Sovina.
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Um dia encontrei-me casualmente com ela fora do balcão. Sovina, o velho. Fizera-a largar a gelataria. Não voltei lá desde então. Não há gelataria na rotunda, entre a casa e a universidade, sem a presença magnânime da Dona Fernanda, das suas histórias e do seu sorriso, que abrigava tanta espontaneidade quanta maquilhagem para a amargura. Chupe, chupe, menina. Antes que derreta.

09 fevereiro 2010

plágio

Houve um dia em que mutilei as minhas calças favoritas quando vi surgir umas idênticas num corpo que não o meu. Outro houve em que deixei de dizer que sou uma miúda de sorte por alguém tê-lo feito, a seu respeito, numa conversa antes de mim. Continuo a sê-lo, e a irradiá-lo, mas pareceu-me absurdo repetir uma expressão, tão comum quanto pessoal, que acabara de ser usada. Mais um houve em que, desgastada mas impiedosa, me entreguei ao infrutífero desalento de tentar fugir ao fenómeno do rebanho que em nada conduz à realização ou à sobrevivência. Não que force qualidades que não possuo. Ou que construa cenários benéficos à minha humilde mas definida condição. A verdade é que se, por um lado, já nada de inventa, por outro, o acato à indiferença e ao comodismo é tudo menos natural.
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Há, incondicionalmente, no ser humano a procura constante por uma identidade própria, por aquele factor único que torna cada célula singular junto de todas as outras. Pele. Um brilhozinho nos olhos. Haverá alguém que não ouse sentir-se especial?
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Daí considerar o plágio um acto tão isento de valor e personalidade quanto de lógica. E plagiar é mais do que tomar como suas noções alheias. Plagiar é mais do que copiar conceitos, estilos e ideias sem referenciar os respectivos créditos. Plagiar é um estado de alma, que vive lá para os lados dos comodistas, acéfalos, irracionais, incautos e ridículos, que, em dia algum, serão acolhidos pela inigualável sensação de aparafusar ou desaparafusar um pedaço do mundo.
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Há distância rio-me deles. E lamento-o. Rir-me-ia e lamentar-lo-ia nos seus rostos com supremo prazer. Mas nem a troça gosto de banalizar. Ela é tão poderosa quanto o amor ou a raiva. E tão devastadora quanto o abandono.

06 fevereiro 2010

flash

É tão difícil escolher uma música. Assim começava o Inferno da Companhia Olga Roriz. A liberdade é inimiga da decisão fácil. Entre a dança e o teatro. Entre a multiplicidade das ofertas e a qualidade indiscutível das opções. Elegi a tão comum inexistência de planos. Descobri, imprevisivelmente, o fado. Cantigas do Maio, do nome maior da canção nacional. Zeca. Interpretado em Ecos de Coimbra com guitarras portuguesa e acústica. Acasos. Ironias.
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Serro os olhos à presença alheia. Abro a vista ao inigualável prazer da satisfação. E há flashes. Imagens rasuradas. Incompletas. Mas inteiras. De emoções. Sensações. Agitações. Alvoroços. Pedaços de corpos. Carne. Pele. Suor. Fotografias tatuadas na mente. Esquissos. Cheiros. Paladares. Tonalidades. Sombras. Segredos. Descobertas. Nacos de gente. Odores. Humores. Prazeres. Desgaste. Vontade. Euforia. Entrega. Porções de vida. Caos. Conforto. Desejo. Libertação. Rendição. Flashes.
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E não haveria melhor forma de terminar o dia.

03 fevereiro 2010

chuva

Ouço-o e acato, indiferente aos que se exilam desta, supostamente desconcertante, intempérie. "Vai a ouvir música. Não se molha." Talvez seja a música o que me mantém a salvo das tempestades. Talvez seja o seu efeito o que me protege dos desalentos mais naturais do meio ambiente. Ou talvez seja apenas a certeza da sua inofensividade o que me faz desafiá-la, tranquilamente. Talvez nem a desafie. Talvez me limite a acompanhá-la.
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Gosto da chuva. Não sei se sempre gostei. Mas a verdade é que ela me ampara. É aconchegante. Companheira. Libertadora. Compreensiva.
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Gosto de andar à chuva. Sem medos. Sem pressas. Sem refúgios. Sem hesitações. Gosto de enfrentá-la de peito aberto com a ironia de quem tem garantida a vitória. Gosto de caminhar à chuva. Do prazer de deixar limpa tanto a pele quanto a mente.
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Gosto dos contrastes. De ver o mundo dobrar-se em si, aproximando a carne dos ossos para amolecer a rijeza do tempo. Das correrias desenfreadas na busca de abrigos. Da socialização absurda nas ombreiras das portas que acolhem os amedrontados.
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Gosto das sonoridades múltiplas que me ecoam nos tímpanos. Da calma apaziguadora dos passos incertos, mas tão ilusoriamente firmes, nas calçadas. Gosto de vagabundar à chuva. Escolho-o a qualquer outra opção. Porque nesse instante pareço existir apenas eu. Senhora de um universo anestesiadamente sereno.
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Pudessem todos os dias maquilhar-se com a luminosidade das estações ensolaradas aliada à água incessantemente a jorrar do céu.

01 fevereiro 2010

limiar

Há dez anos, disseram-me pela primeira vez que, assim, eu não iria longe. Eu respondi que apenas assim chegaria a algum lado. Disseram-me que em nada adiantava lutar contra a maré. Que de nada servia lançar sopros contra tempestades. Que jamais eu mudaria o mundo. Que jamais venceria.

Nesse dia não baixei os braços. Ergui-os mais alto. Nesse dia não cessei guerras. Tive medo de que, se o fizesse, o mundo ruísse sem conserto. Achei que a liberdade e a justiça eram os únicos valores que justificavam uma luta. E abri-a em pequenos gestos. Aqueles que cabiam no apertar de uma mão, ainda imatura.

Há dez anos, retorqui. Se um dia tivesse de voltar costas à minha verticalidade, que fosse por um grande motivo. Não por boas notas na escola. Não por uma consequente entrada facilitada na universidade. Não por um posto de trabalho cujos fundos revertiam apenas para o meu divertimento. Não por um futuro que não sabia se teria.

Os anos passaram e eu julguei-me curada. Sabia agora que não mudaria o mundo. Se dei por findas as batalhas? Parece que não. Talvez seja uma ideologista. Talvez viva envolta em valores que já não existem. Talvez teime em acreditar. Talvez seja apenas uma sonhadora. Inconformada. Incompreendida. Iludida. Ou talvez seja apenas estúpida. Quem quer saber, afinal?!

Hoje os valores mantêm-se. A verticalidade é a mesma. Mas eu sou diferente. Ou deveria sê-lo. Já não tenho 15 anos. Já não ando no liceu. Já não organizo campanhas de recolha de fundos para Timor. Já não faço voluntariado com crianças e idosos. Hoje trabalho. Mais do que nunca, como é suposto. Hoje sou independente, como é suposto. Faço o que gosto e para o qual me formei, como é suposto. Mas não consigo parar de confrontar o mundo com o que julgo ser o correcto. Com o que eu acho que é correcto. E não consigo ser inteligente o suficiente para fazer o que me mandam sem misturar trabalho com integridade. Merda. Outra vez.