17 setembro 2012

caçadora de sonhos


Enfrentava-se logo pela manhã. Enchia-se de coragem e ensaiava gestos e poses com rigor. Escondia as imperfeições do corpo, moldado a vícios e rotinas, e fazia por realçar uma beleza juvenil que chegara tarde e teimava em fugir depressa. Sorria, enganando o tempo e as tormentas. Depois virava-se, de um lado e do outro. Todos os dias, durante largos minutos, antes de fechar a porta de casa e encerrar lá dentro o que sobrava da intimidade.

Saía levemente maquilhada, confiante. Óculos escuros, a esconder da luz as ilusões. Arranjara as unhas o melhor que podia sob a claridade débil do candeeiro de pé baixo da sala. Pintava-as com o único verniz que comprara, prisioneira da escolha feita tantos anos antes. Separava a roupa, entre a pouca que tinha, com aprumo e ponderação, consoante as expectativas que as insónias lhe desvendavam durante a noite.

Ao espelho via um reflexo volátil, que raramente a satisfazia. Assim como os desejos da alma que só ela sabia de cor. Envergava a farda de todos os dias. Vestia segurança por fora e embaraço por dentro. Levava o conforto nos pés. E partia com as esperanças a chorar de fome na palma das mãos.

Caçava sonhos nos olhos dos outros. Como os outros caçavam nela desejos vãos. Vendia aparências com o sorriso e delírios na ausência desgastada do olhar. Caçava sonhos nos olhos dos outros e apoderava-se deles. Atava-os aos seus numa teia de fantasia transitória. Emaranhava-os e dava-lhes vida, seguindo à letra o guião que nunca escrevera. O guião que, no fim, sabia nunca ser o seu.

Fazia dos equívocos encanto. Dos temores aventura. E do desejo magia. Fazia da busca jornada. E do amor propósito. Quando abria novamente a porta e entrava trazia o peito vazio. Do lado de dentro era esperada, sempre com saudade. A solidão abraçá-la-ia na nudez fria da cama a que já habituara os ossos. E assim ficariam, aconchegadas uma na outra, a escutar as madrugadas.

10 setembro 2012

língua

Conheceram-se no banco de um jardim, quando ela adormecera e ele a encontrara lá sozinha. Não falavam o mesmo dialecto. E pareciam não ter nada em comum. Ele vinha do Norte. Ela sempre vivera no Sul. Ele correra o mundo sem criar raízes. Ela sabia de cor o toque de cada uma das pedras da calçada que percorrera anos a fio. Ele gostava de igrejas. Ela das nuvens do céu. Ela fazia perguntas. E ele dava-lhe sempre respostas.
.
Não falavam o mesmo dialecto. Mas ele contava-lhe histórias, inventava personagens, desvendava-lhe mistérios. Falava muito. E ela escutava. Escutava-o. Olhava-o em silêncio e sorria. Imaginava aventuras e romances, conceitos e verdades, escondidos por detrás de cada uma das palavras que não entendia. Ouvia o som da sua voz e sonhava. E ele sonhava com ela.
.
Abraçava-a. E assim ficavam, aconchegados um no outro, sem tensões, sem desconfortos, sem falsas promessas ou vislumbres de futuro, como se sempre ali tivessem pertencido. Como se se conhecessem. Como se fossem metades iguais de um todo efémero. Como se o mundo que rodava lá fora fosse cenário de um conto que não lhes dizia respeito. Como se a vida começasse e acabasse sempre ali, naquele círculo perfeito.
.
E depois conversavam e entendiam-se e completavam-se, em movimentos sincronizados, escravos e ditadores das mesmas vontades. Ele acompanhava-lhe os passos. Ela acompanhava-lhe os desejos. Quando os olhares se cruzavam, exilando fantasias, sabiam que, afinal, havia uma língua universal para onde poderiam sempre fugir. E fugiam. Fugiam juntos.
.
Se as horas fossem já longe, ela fazia-lhe ovos e salsichas. Dividia o pão com as mãos. Descascava a fruta, que partilhavam em pedaços com os dedos. Ele abria uma garrafa de vinho. Comiam juntos, despreocupados, na bancada alta da cozinha. Como se o mundo todo coubesse entre aquelas quatro paredes.
.
Mal a solidão apertasse encontrar-se-iam de novo, para deixar a vida e os outros do lado de lá das portadas e enganar o tempo.

03 setembro 2012

sombra


Cantam-me as ruas despidas silêncios à janela. Entoam cânticos e súplicas quando o sol se põe, sempre num horizonte distante do meu. E as sombras vêm, maiores e mais densas, maiores e mais altas, maiores e mais escuras, murmurando angústias e tecendo conquistas.

Choram baixinho e eu ouço-as. Seguem-me o rasto e assaltam, sem esforço ou resistência, os muros em que me encerro. Invadem-me o ar e a alma. Invadem-me a quietude e o sossego. Invadem-me em tudo o que julgava ser.

Trazem-me os medos de volta e esfregam-mos, sem piedade, na vista. Reciclam as emoções que deito fora e depositam-mas, persistentes, no espaço, há muito lotado, entre a profundidade das entranhas.

Tranco a porta por dentro e fecho o meu mundo ao dos outros. Fecho-me a ti. Fecho-me de ti, neste fingimento convictamente falso de já não me importar. E fujo, petrificada num chão que não corre e que me agarra, em desequilíbrio.

Escondo-me de mim por baixo da pele. Escondo-me das sombras na penumbra da luz que resta esbatida nos mosaicos. Arrefeço o corpo contra o calor morno das paredes. Moldo os ossos à rugosidade da pedra e os gestos à rijeza da cal. Prendo o tempo no canto dos olhos. Às vezes, solta-se, incapaz de se suster. E depois rio e canto. E choro e lamento. E grito. E calo-me. E perco. E perco-me.

No fim, há o mesmo frio a queimar por dentro o que resta do que fui. No fim, há uma saudade intensa de mim mesma. No fim, resto eu contra mim própria. No fim, resto eu e mim mesma, na ilusão de que, sozinha, seria suficiente. Na ilusão de que, sozinha, eu bastaria.