27 fevereiro 2011

pólvora

Piso o risco. Cruzo a margem que opõe o real ao imaginário. Cedo ao irresistível. Resisto ao cauteloso. Afronto os limites. Enveredo por este pântano lamacento de curiosidade e desmazelo.

Revejo as leis do meu universo. Quebro o pacto pouco científico que assinei comigo. Lanço-me na clandestinidade. Desafio-me. Com a mesma destreza com que me abandono. Volto a ser infiel. Traio-me.

Trago os afectos a fervilhar-me na secura da boca. Trago um rastilho explosivo preso à firmeza antagónica das emoções. Bomba-relógio reaccionária que me deixa trôpega e combalida.

Na impossibilidade de derrubar a alma, negligenciada, molesto a carne. Reprimo os pêsames quando os olhos se reviram para um cenário fictício. Enganam-me. E eu finjo.

Descuro as regras que desenhei. E acerto contas com os pecados. Entre as euforias e os desalentos assumo a perda do comando. Renuncio à verticalidade. Sujeito-me à letargia.

Ficarei perto do que sinto ser certo. Até ao dia em que mudar de opinião.

26 fevereiro 2011

impacto

Talvez sejam os sonhos o que me mantém erguida. Talvez seja por eles que tantas vezes afasto a capacidade desvirtuada de me proteger. Talvez sejam também eles quem, na fragilidade, me arrasta para o abismo. Regresso sempre mais forte. Talvez no fundo eu seja uma mulher (serei já mulher?) de fés. De crenças. Parece que acredito. Parece que teimo em acreditar. Em mim. Nos poucos que são os meus. Na estrutura, nem sempre sólida, a que chamamos Humanidade.

Talvez o mundo não me engula. A mim ou às minhas convicções. Talvez eu resista, assim mesmo, entre a debilidade da menina sonhadora e a destreza de manter intactos os valores utópicos que noutro dia me incutiram.

Não, o mundo não me vai devorar. Talvez eu consiga continuar esta busca inconstante pela satisfação. Por uma plenitude mais que momentânea, mais que efémera, que não sei sequer se existe. Sim, são os sonhos que me mantêm viva. Com toda a infantilidade. Com toda a imaturidade. Com toda a instabilidade. São eles quem me rege. E cada um deles vale, incontestavelmente, a sinuosidade dos passos que o precedem.

Daí que na implacabilidade de um único instante, efémero e irrepetível, todo o eixo que me sustenta se revire sobre si mesmo. O mundo todo pode mudar.

Poderia hoje, aqui e agora, o universo reinventar-se. Poderiam renovar-se todos as palavras. Poderiam povos inteiros gladiar-se na disputa de razões equívocas. Poderiam os céus abater-se sobre a fome dos homens. E a imensidão dos rios fazer emergir das encostas os oceanos.

Poderia parar o tempo. Assim. Como eu o sinto. Intacto.

Que permaneceria aqui, neste exacto lugar, desarmada. Com o peito preso às palavras afónicas que não consigo lançar-te. Com um fulgor ardente a calar-me a boca. Com o sangue a pulsar-me ainda nas veias um odor lascivo que não é meu. Com o teu corpo entranhado nos poros da pele e da alma.

Talvez se o mundo todo se revirasse lá fora eu abandonasse o medo. Por um instante apenas. Para te dizer...

21 fevereiro 2011

tédio

Os domingos sempre foram dias estranhos. Melancólicos. Nunca percebi se por antecederem o primeiro dia oficial de trabalho se por porem fim a um dedicado inteiramente ao lazer sem restrições. A verdade é que os domingos têm características próprias. O mundo gira de forma diferente nestes dias. É verdade.

Ao domingo sou igual a todos os outros dias do calendário. Percorro os mesmos sítios. Não mudo de aspecto nem me transformo. Não me esforço por aproveitá-lo melhor ou pior. Não tenho roupa domingueira. Como não tenho roupa de trabalho ou de sair à noite. Tenho a minha roupa. Ponto. Que serve para tudo.

O meu índice de prazer ao domingo mantém o mesmo nível quer saia de casa para aproveitar o sol ou a chuva quer mergulhe no conforto anestesiante do sofá.

Mas ao domingo há mais gente nas ruas. Estranhamente, com o mesmo síndrome de obrigação com que se vai trabalhar às nove horas de segunda-feira. Sai-se ao domingo porque é domingo. E o domingo é dia de ser aproveitado. Mesmo que à força.

Moro num prédio no centro da cidade. Mas tenho um quintal. Bem, não é bem um quintal mas é quase como se fosse. É um bar, acoplado a uma livraria, que fica ao virar da esquina. Mas é como se fosse um quintal, em que eu detenho uma fracção que divido com um punhado de estranhos. Não tem tecto. Mas tem árvores, flores e obras de arte. Tem mesas, cadeiras, almofadas e até mantas para as noites frias. Tem uma máquina de café e dois ímpares anfitriões. Se não tenho nada para fazer, cruzo a entrada do Pátio. E sinto-me como no meu próprio quintal.

Ao domingo, o cenário muda. Não o meu. Mas o dos outros. Há uma invasão de Henriquinhos, Bernardos e Guilhermes. Afonsos, Martins e Maneis. De Catarinas, Beatrizes e Marias. De pais e putos imaculados. De pais sérios e putos mecânicos, construídos à semelhança dos progenitores. Ao domingo os putos podem correr um bocadinho naquela espécie de quintal que não lhes pertence. Nunca serão, no fundo, putos a sério. Não têm bolas, berlindes ou peões. Não tropeçam nas pedras da calçada nem levantam poeira nas travessas. Não têm uma pontinha de ranho a correr-lhes do nariz nem cor de barro na ponta das unhas. Puto que é puto tem feridas nos joelhos e nódoas na roupa. Puto que é puto não se senta ao lado dos pais a beber um garoto nem pede para lhe sacudirem as migalhas do colo.

Confesso que me incomodam. Sinto que me invadiram a casa sem lhes trazer, ao menos, uma pitada de espontaneidade e agitação. E lamento-o. Lamento que o mundo dos putos que não são putos seja um lugar menos livre e genuíno para se viver. Mesmo ao domingo.

20 fevereiro 2011

negrume

Não durmo vai para três dias. Não tenho sono. Apenas aquele cansaço soturno que embala e combale. Que se arrasta, sombrio e melancólico. Como se o tempo detivesse a vontade de entregar ao presente o estatuto de passado. Sinto a aridez deste vazio entranhar-se-me nos ossos como um punhal a rasgar a carne. Há um nódulo rugoso que cresce destemido cá dentro, impedindo o ar de varrer a alma e oprimindo a necessidade de respirar. Sufoco. Sem que explosão alguma desfaça em pedaços este pesar lacerante.

Não durmo vai para três dias. Entrego-me à estranha terapia de gastar horas a rever episódios da memória. Processo letárgico e tardio em que me assumo como alvo e motivo. Sei de cor todas as partículas desta história a que a humanidade denominou de existência. E, mesmo assim, procuro nas gavetas emocionais a reinvenção. Compreender experiências para trilhar caminhos. Descodificar as causas para atenuar a adversidade dos efeitos.

Neste carrossel de vitórias inglórias e abismos torrenciais, há dias dolorosos. Daqueles que parecem reter tempo e espaço numa cápsula isenta de coerência ou sanidade. Daqueles em que o caminho parece ser uma estrada sem rumo, trilhada por trilhar neste passo sonâmbulo para lugar algum.

Vão para três.

Em todos eles procurei a ausência de pensar. Na ânsia de que o isolamento me libertasse esqueci-me de um pormenor essencial. Carrego-me sempre comigo. E é aqui, entre os fragmentos desde corpo, que residem, em habitat natural, todos os fantasmas.

01 fevereiro 2011

aurora

Ouço cá de dentro o latir incómodo que deturpa as ruas lá fora. Sei que é já madrugada. Escuto os uivos dos vagabundos perdidos na solidão fria das calçadas. Caminhando à luz gasta de um céu redentor de agonias e cansaços. Rendidos à melancolia que afaga e distancia o que foi do que ainda virá.

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Sei que os loucos vagueiam nestas madrugadas, sugando-lhes a vida, alimentando-se dos despojos da cidade que já dorme e lavrando de murmúrio o silêncio.

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Descalça de aconchegos não procurei naquela madrugada um vazio que perdurasse mas um ímpeto de curiosidade, tão irreflectido quanto genuíno. E, tal como eles, parti no negrume decadente de uma noite com um amanhã tardio. Negligenciei amarguras e fantasmas. Amordacei temores e terrores. Como o sangue a usurpar consciências, fui trilhando mais um pedaço desta história.

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Talvez tenha adormecido ao raiar do dia. Porque hoje o tempo parece ter outra dimensão.