27 setembro 2018

angelita

Em Setembro de 1989 estavam na moda os sapatos pretos de verniz, destacados pelos peúgos brancos a assentar a meio da canela. Em Setembro de 1989 a minha mãe vestiu-me uma camisa com pintinhas e uma saia de ganga nova, com peitilho. Comprou-me uma mochila quadrada, de tecido azul escuro, sóbria, com um rebordo de fita vermelha.

Em Setembro de 1989 faltavam-me os dois dentes da frente. Tinha uma franja que pousava, direitinha, mesmo acima dos olhos. Foi assim que me apresentei no passeio em frente ao jardim de casa para a fotografia do meu primeiro dia de aulas.

A excitação misturava-se, naquela manhã, com uma pontada de desapontamento. Não iria ser aluna da Dona Noémia, a velha professora que, tantos anos antes, ensinara as letras ao meu pai, naquela mesma escola. Sucumbia à quebra de um padrão no qual acreditava residir um certo romantismo e isso desiludira-me. Desconhecia, até ali, o tamanho da aventura que me aguardava.

29 anos depois daquele Setembro, e mais de 11 após o término da minha licenciatura, vi-me, em memória, no passeio em frente ao jardim da minha casa de infância, a pousar para a mesma fotografia. Era dia de aniversário da Dona Angelita e eu dava, novamente, os primeiros passos numa instituição de ensino, para me matricular num mestrado. Com a coincidência e o restabelecer de um certo padrão recuperava, quase três décadas depois, aquela pontada de romantismo que julgava ter sido perdida.

A Dona Angelita é parte essencial do que sou. Não me moldou o feitio. Mas derrubou barreiras, desfez perímetros e arrasou fronteiras, criando espaço para que ele se pudesse expandir e crescesse. A Dona Angelita tem lugar cativo no círculo restrito das minhas pessoas imprescindíveis. E o seu posto é intransmissível.

Às vezes trocamos cartas. Partilhamos música. Amiúde um café e dois dedos de conversa. Mas palavra alguma será capaz de exprimir o seu impacto na formação do meu carácter e na definição dos eixos que compõem a existência.

A Dona Angelita foi a minha primeira professora. Foi mentora de um universo paralelo criado unicamente com o propósito de nos fazer crescer e sonhar, sem crivos. Se, durante décadas, me dediquei à infrutífera arte de reclamar de métodos de ensino é a ela que o devo. Se ainda hoje recuso o acordo ortográfico é a ela que atribuo a culpa. É que a Dona Angelita ensinou-me a pensar. Fez-me desenvolver a criatividade, a imaginação e o sentido crítico. E foi-me difícil aceitar que, tantos anos mais tarde, havia de me deparar com um sistema académico de formação de papagaios.

A Dona Angelita quis-nos a todos fora do rebanho. E uma mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original. Não tivesse ela destapado o arco-íris e todo o meu mundo seria diferente.

A Dona Angelita será sempre uma referência. De carácter, de conhecimento, de humanidade, de métodos pedagógicos. A Dona Angelita será sempre a minha professora, a minha mentora. E viverá para sempre.

Há 29 anos arrancava naquela escola centenária um novo programa curricular, experimental, do qual a Turma dos Coelhinhos fazia parte. Todos os conteúdos programáticos se baseavam em produções da própria turma, sem auxílio de qualquer manual. Isso fez-nos ler. Desenvolveu-nos a escrita. Havia concursos literários semanais e abordagens ao teatro. Falava-se de astronomia e de história contemporânea. Editava-se, julgo que mensalmente, o jornal “O Balão”. A aprendizagem era prática, dinâmica, e a avaliação focava-se não na competitividade mas na cooperação. A Dona Angelita formava seres - humanos, pensantes, humanizados. A Dona Angelita era única. E sempre o será.

Em 17 anos de currículo académico tive menos de uma mão cheia de docentes a deixar-me marcas que considero sólidas. Nenhum deles pode, contudo, ser equiparado à Dona Angelita.

Este texto surge com um dia de atraso face ao seu aniversário e à minha matrícula num mestrado. Chega na véspera do arranque deste novo ano lectivo. Que, à semelhança daquele Setembro de 1989, o misto de excitação e desapontamento sejam o presságio para uma aventura maior que o imaginável.

Por todas as emoções, que dia algum conseguirei transpor para o papel, por esta pequena conquista (tornada imensa perante as batalhas já travadas), o meu OBRIGADA, DONA ANGELITA.