23 novembro 2011

tempestade

É quase sempre ao cair da noite. Quando cerro o mundo à ombreira da porta. Quando escondo o céu do lado de lá das janelas. Quando abafo a chuva no sufoco da almofada. Quando deixo entrar o suspiro deserto do vento.

É quase sempre assim. Quando o sol já nada tem para oferecer que não o frio. Quando as horas atrasam, já cansadas, o passar monótono das sombras. Quando até o ruído se aconchega, adormecido.

É assim. Entre a partida de um instante e a chegada imediata de outro. É assim. Entre o pulsar contínuo do sangue e a oxigenação forasteira dos tecidos. É assim que, vagarosamente, a carne se revolve por dentro. É assim que, em desespero, as entranhas se molestam por baixo da pele. É assim que o sal ultraja o silêncio vão dos soluços.

É quase sempre ao cair da noite. Quase sempre. Quando os pontos cardeais se desconjuntam, confusos. Quando as palavras que ouvi me soam já todas ao mesmo. Quando enumero incógnitas sem conseguir desmembrar anseios.

Trago a alma presa por um baraço ao canto dos olhos. E uma sensibilidade, áspera, rude, fraudulenta, a descoordenar-me a articulação dos sentidos. Trago a vista cansada deste horizonte sempre longínquo. E o esqueleto já gasto, decrépito e combalido, de tanto empurrar o ponto que marca a viragem.

Ao cair da noite. Quase sempre. Guardo a solidão só para mim.

08 novembro 2011

ansiedade

Murmuro os passos no silêncio gélido das calçadas. Sopro o vento directamente nos olhos. E afasto o céu com os sonhos que sobram na ponta dos dedos.

Trilho uma viagem dupla e desfragmentada à medida que o chão me ultrapassa sem pressas a sola dos pés. Há o cenário a deixar para trás, anónimo, um espectro sem corpo e as gavetas da memória, infiéis, a sussurrar-me, ensurdecedoras, aos ouvidos.

Lembra-te!

Há uma despreocupação física que rouba espaço à alma. As malhas do destino a empurrarem-me o fado em frente sem perguntarem sequer se quero ficar.

Não te lembres!

Trago o vazio como pano de fundo e uma teia gasta de lugares-comuns como adorno. Trago a chuva embrulhada no forro dos bolsos e as vontades encolhidas na palma das mãos. Trago um grito sem fôlego entalado na garganta e o sabor amargo do sal a corroer-me os restos da carne minguada. Trago o olhar a recuperar vagarosamente a visão e o esqueleto a reconquistar em batalhas a verticalidade.

Trago um punhado de premissas que a racionalidade tornará norma e a certeza de que o tempo jamais se cingirá ao suceder metódico das horas.

Hoje dou movimento aos ossos para impedir que petrifiquem. Sei que, cá por dentro, entre a barreira protectora das costelas, há um músculo vivo e ansioso que, em dia algum, deixarei cair em atrofio.