29 abril 2010

escala

Dias há em que resmungo. Em que rezingo. Em que me zango. Em que abro as goelas ao mundo, aos outros e a mim própria. Em que grito murmúrios eloquentes e persuasivos. Em que amaldiçoo a terra e as gentes. Em que apregoo a consciência de uma decisão irreflectida.

Dias há em que discuto e argumento. Em que me esmifro em objecções. Em que transformo a base da pirâmide hierárquica que ocupo num posto exímio de contestação.

Dias há em que duvido e ponho em causa. Em que pondero.

Hoje lembrei-me de todas as cláusulas que me fizeram chegar aqui. Recuperei os valores que me lançaram nesta viagem pouco certa que, aos poucos, vou descobrindo e conquistando. E se dias há em que nem os argumentos mais aprimorados me parecem credíveis, outros há também em que as verdadeiras razões regressam à tona da minha moral.

Sim, hoje sei que, apesar de todas as contradições, é como jornalista que faço sentido.

27 abril 2010

carne

O corpo resiste. Persiste. Subsiste. Teima. Aguenta-se. Um pouco mais. Sempre um pouco mais. Socorre-se de baterias alternativas. Recorre a veias e artérias inutilizadas – estreitos que sustentam inusitadamente a sobrevivência.

Corre, desbravando e irrompendo, a energia que não se finda. Não se funde ao cansaço, ao desgaste, à fadiga. Não se finda. Reinventa-se. E o esqueleto lá caminha. Mais ou menos atordoado. Mas hirto. Erecto. Separando o essencial do acessório. Rentabilizando recursos. No encalço de um objectivo.

Ainda me surpreende a resistência desta casca que nos cobre a alma. Ainda me fascina a intermitente capacidade de desafiar as ciências naturais em prol não da carne mas daquilo que a atravessa e que a supera sem barreiras.

25 abril 2010

Pedro

O toque. Suave. Ameno. Ingénuo. Acriançado. Puro. Pioneiro.
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Pousei-lhe a mão sobre o ventre. Dilatado, avolumado, aveludado, distendido. Silêncio. Calma. Tranquilidade. Vi paz. Vida. Senti. Sem que nada se mexesse ou respondesse aos meus estímulos amedrontados. Existência.
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Olhei-lhe o rosto. Deformado, cansado e dorido. As mãos e os pés inchados. A pele baça, desbotada, envelhecida. O corpo mole, cheio, enfadonho. Incómodo, fustigado, aborrecido, isento de conforto.
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Mas os olhos... Aqueles olhos de moura... Sorriam-lhe como nuncam antes. Emanavam luz, brilho, plenitude. E dor. Uma dor tão intensa. Tão imensa. Tão presa aos ossos e à carne. Tão imbatível quanto a própria felicidade. Desejo. Caminham os opostos lado a lado. Abraçados. Unidos. Completos. Como duas pontas unidas pelo mesmo cordel.
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Entre elas crescia ele a cada instante. Sem tensões. Sem pressões. Ao ritmo que é o seu. Complexo. Mas descomplicado. Crescia. Um pouco mais. Ainda mais. Livre. Desbravando cedências e entregas.
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Naquele instante, efémero como todos os outros, ele fez-me vergar perante a sua grandiosidade. Anulou tudo o que esvoaçava, anárquico, por estas terras. Sem consciência da sua importância no mundo que conheço. Até breve. Até já.
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(O Pedro nasceu a 15 de Abril)