16 fevereiro 2010

asas

Sacudi o caruncho do músculo que bombeia cá dentro a vida. Fi-lo sem zelo ou pudor. Agitei-o. Abanei-o. Despertei-o, sem benevolência. Arranquei-lhe a película de pó que o ia protegendo e mantendo inteiro, salvaguardando os pedaços ainda virgens. Lavei-lhe a cara e limpei-lhe o rosto. Deixei-o quase como novo. Bonito. Apresentável. Funcional. Por fim, serrei-lhe as correntes e cortei-lhe as mordaças. Vive.

Agora tenho-o aqui. Pousado na pele grossa de duas mãos. As mesmas que o aconchegaram na hora de adormecer. Agora vejo-o acordar. Atordoado. Mas cheio de vontade. Espontâneo. Mas propenso aos vendavais e às amplitudes térmicas. Descuidado. E, por isso, sujeito aos percalços e aos solavancos. À rigidez dos embates e das quedas. À violência das unhas que rasgam e ferem.

Um dia voltarei a guardá-lo. Voltarei a protegê-lo. Entre os ossos e o ócio. Para que se acomode. Para que sossegue. Para que recupere, resguardado. Mas hoje deixo que palmilhe esquinas e calçadas. Que corra todos os riscos a que tem direito. Hoje dou-lhe a sua dose de liberdade. Sabendo que um dia – outro, que não o de hoje – o irei recolher, anestesiado e cansado.

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