30 junho 2010

imunidade

Só hoje. Só por hoje. Senta-te aqui. Ocupa o lugar que o tempo deixou vago. Só por um pouco. Por um instante efémero. Ou pela infinidade dos dias. Senta-te aqui. Acolhe-me a companhia. Aqui, à soleira da porta. No morno aconchego do entardecer. Ou em qualquer outro lugar.

Silêncio. Lancemos para longe as palavras instantâneas. As frases feitas. As justificações. Os desconfortos. Hoje. Só por hoje. Entreguemo-nos ao sossego. Inertes.

Senta-te aqui. Fiquemos apenas lado a lado. Sem os teus dedos a tocarem os meus. Sem a alma a roçar a pele. Afastemos, imunes, a poeira que corre lá fora.

E hoje. Só hoje. Só por hoje. Por um instante apenas. Efémero ou infinito. Senta-te aqui.

17 junho 2010

embriaguez

Embriago-me. Embebedo-me. Inebrio-me. Constantemente. Incessantemente. De forma recorrente. Sistemática. Descontrolada.
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Sorvo, sedenta, o que me passa a pele e atravessa a alma. Declino concordâncias e coerências. Sugo devaneios e deleites. Espremo, sem regra ou pudor, os estímulos que me atingem, desenfreados. Descasco-os. Escorro-os. Esgoto-os. Suprimo-os. Canso-me deles. Afasto-os. Substituo-os. Estorvam.
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Embriago-me, embebedo-me e inebrio-me. Incansavelmente. Acedo ao desejo ávido de não parar. Cá dentro há um ser quase mecânico que não dorme. Destruição lacerante. Sôfrega de vida e vivências.
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Anuo à carência de trocar vícios por vícios, mantendo hábitos. Não conheço meta. Desconheço destino. Não sei qual o caminho. Haverá um melhor que todos os outros? Por ele, talvez alheia à sua virtude, alcanço as pontas frágeis que me levarão a outro lugar.
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Até lá... Um café e dois dedos de conversa?

16 junho 2010

inércia

Continuo agrilhoada a este ócio que me contamina. Narcótico que vicia e atordoa. Soporífero, anti-depressivo, de nódoas negras e fungos emocionais. Que se instala e, crónico, abala os alicerces dos dias então comuns.

Continuo aqui. Ainda oca. Ainda estéril. Ainda infértil. Vazia, abstracta, abstraída. A perseguir um cordel cada vez mais remoto.

Procurei memórias e reflexos. Vasculhei-me. Revolvi histórias e cantigas. Estive atenta a estímulos e prazeres. Fortuitos. Ocasionais. Imprevisíveis.

Talvez, como Baptista-Bastos, um odor – fresco ou agoniante -, uma imagem – visualmente brusca ou caoticamente atraente – uma sensação – inexplorada ou reconstruída – fosse engodo para a dança, cúmplice, entre a caneca e o papel.

Pensei falar de sonhos. Ou escrever sobre o espelho que, assustador, já não reflecte a minha imagem. Ou contar as fábulas que crio sobre os outros - gente anónima que me deleita ao cruzar este mundo. Ou aniquilar em palavras a batalha pessoal que travei na clandestinidade. Mas não. De nenhum destes pressupostos surgiram as letras certas com que sujar o papel.

Talvez outro dia.