09 maio 2012

desencanto

Dizia o Miguel Esteves Cardoso numa das suas crónicas que, hoje em dia, ninguém já morre de amor. Contava ele, em palavras imortalizadas pela tinta no papel, que ninguém era já capaz de se apaixonar perdidamente. Que a humanidade renunciara à loucura e se tornara incapaz de grandes actos em prol do maior de todos os sentimentos. Não há já quem se predisponha a correr o mundo em busca de um olhar roçado de passagem que, em vez da efemeridade, permaneceu tatuado na profundidade da alma.

Ninguém morre de amor. Hoje já ninguém morre de amor.

Não me lembro quando dei com esse texto pela primeira vez. Não me recordo qual dos meus amantes, infortunados, me o fez chegar às mãos. Mas sei que o devorei, uma vez e outra ao passar dos anos, com uma fúria esfomeada. Sei que cada um dos seus pressupostos se assume ainda como objecto da minha reflexão e motivo de busca da minha própria verdade, tantas vezes dúbia e mascarada.

Talvez não morra efectivamente de amor. Talvez não sucumba, no meu físico, à fatalidade que se tornou amar. Talvez este esqueleto, que em dias mal reconheço, continue a caminhar. E talvez o faça, apenas e só, para evitar a fossilização dos membros entre os passos quase quietos.

Talvez o amor não me mate. Talvez me vá apenas conduzindo, em rotas demoradas, ao ponto preciso que delimita a margem do abismo. E talvez a ele se suceda um estado qualquer de demência e insanidade.

Vejo-me vaguear pelo tempo como se ele demorasse mais a mover-se na tua ausência. Como se os minutos parecessem horas e as horas tivessem a periodicidade cíclica de estações de um ano inteiro. Como se o mundo se fechasse ao universo, gélido e estático, no momento em que as vontades ou o fado te afastam de mim. E depois, quando o relógio recupera a corda e me trazes o corpo para perto numa resposta tardia aos anseios, retenho no medo tudo o que tenho dentro para que não me roubes novamente o equilíbrio ao partir.

Tenho pedaços soltos do coração entranhados no peito cada vez desmembrado. Tenho cada um dos teus suspiros a pairar na vivacidade ilusória e desmedida das veias. E saudade. E angústias. A revolverem-se por baixo dos poros.

Não sei, afinal, se não se morre de amor.

Porque não conheço já outra forma de estar que não esta. Esta em que me protagonizas o pensar dos dias e encenas as tormentas que as insónias me trazem à madrugada. Esta que se descompensa em fracções de segundo. Que pode rasar o doentio e o patológico.

Talvez pudesse hoje vigiar-te o sono uma noite inteira. Talvez pudesse deixar que fosses tu a proteger-me a alma. Mas hoje, quando os receios consomem à socapa tudo o que sou, refugio-me no silêncio e cedo o espaço à distância, agora controlada, a que me fui habituando.

Hoje, quando o tempo parece correr desenfreado, deixo que a realidade me arranque os membros dos sonhos e os aproxime mais da superfície da terra. E aí, sim, durmo descansada.