21 junho 2012

besta


Hei-de arrancar a alma do peito e entregá-la ao diabo, antes que o branco deste caderno se alastre. Hei-de esventrar a carne com as minhas próprias mãos e sustê-la com força entre os dedos sujos. Hei-de espremê-la com fúria e vê-la desfazer-se em fragmentos mínimos com agrado. Hei-de oferecê-la, assim mesmo, em nacos decompostos, enfermos e bolorentos. Hei-de dá-la de comer aos demónios para que me libertem.

Hei-de pousar o coração num tronco e cortá-lo com os golpes certeiros de um machado. Hei-de fazer dele uma pasta asquerosa e barrenta, daquelas que se agarram, sem escrúpulos, à sola nojenta dos pés.

Hei-de fechar as tripas num saco do lixo e livrar-me delas sem pudores ou compaixão.

Hei-de ser oca no interior e na essência, para que deus algum me queira a seu lado. Hei-de ser estéril, árida, infértil. Hei-de ser vazio por dentro e fantasma por fora.

Hei-de ser igual a ti, meu amor!

Hei-de sarar as chagas. Hei-de esgotar as lágrimas, as tormentas, as maleitas, os mistérios. Hei-de ser cal. Pedra. Cinza. Hei-de voar mais leve. Hei-de caminhar mais livre. Hei-de rir. Hei-de rir tanto ainda!

Hei-de ser muralha, pirâmide e rochedo. Hei-de ser terra e vento e fogo. Hei-de ser tempestade e abismo. Hei-de ser dor, ferida e veneno. Hei-de ser sal e espinho e farpa. Hei-de ser nó e forca. Hei-de ser agonia e angustia. Hei-de ser fome e sede. E medo. Hei-de ser medo. Hei-de ser sangue e vísceras e vermes.

Hei-de ser igual a ti, meu amor!

Hei-de ter sorriso de anjo e mãos de seda. Hei-de ser aparência, ilusão e engano. Hei-de mentir com os olhos e matar com a boca. Hei-de estripar entranhas, cuspir o pó, pisar os restos moribundos de nada e embriagar-me. Hei-de embriagar-me depois. Hei-de fazer amor e gritar de prazer. Hei-de ser pecado e pesadelo.

Hei-de ser melhor que hoje. Hei-de ter paz.

Como tu, meu amor!

16 junho 2012

lixo

Era o cheiro a sujo e a podre. A náuseas e a vómito. O cheiro a lixo e a mijo. O odor pestilento a decadência e hostilidade. O fedor a desalento, abandono e solidão.

E as moscas. As moscas a poisarem-me no corpo como se me conhecessem. E eu a afastá-las. Odeio moscas. E elas a mostrarem que são mais e mais fortes. E que não me largam. E eu já sem força para sacudi-las dos braços, das pernas e do rosto. E a raiva e o cansaço. E a irritação. E elas a circundarem-me como se, ali, também eu cheirasse a sujo, a podre, a vómito, a lixo e a mijo. Como se também eu ali estivesse, enclausurada entre os becos imundos e o vazio de esperanças. Como se também eu viesse para ficar. Como se também eu esperasse a morte lentamente.


E os vagabundos a olharem-me com ar de fome. E eu a olhá-los com ar de nojo. E os outros a passarem-lhes, brandos, ao lado. E eu a vê-los já sem espanto. Eu a perder na calçada os valores e a carregar as angústias na lentidão pesada dos passos. Se ao menos ainda me sorrissem. Se ao menos me agradecessem o cigarro que também me escasseia na onça. Se ao menos baixassem a voz.


Não quero saber do filho que tens sem leite em casa. Não quero saber. Quererás tu saber dos meus? Deixa-me em paz! Não me interessam as maleitas que trazes no corpo pobre e molestado. Não quero vê-las. Sai-me da frente! Não quero olhar-te nos olhos e saber que mentes. Estou farta de gente egoísta e ingrata. Estou farta de ti e dos outros. Não, não tenho dinheiro. Sai-me da frente! Não fales comigo! Hoje não quero saber de lamentos.


E o frio. O frio que vive por dentro a estilhaçar-me as verdades e a trazer-me as dores à superfície baça dos olhos. E uns e outros, em campos opostos, a dizerem-me tudo o que já sei. E o pranto a que me entrego quando mais nada parece querer acolher-me os membros.


E a segurança, ainda desconcertante, de me saber sem certezas.