31 dezembro 2009

2010

Talvez esconda razões com desculpas. Talvez procure fugas e refúgios. Talvez queira qualquer coisa para tapar o buraco do que verdadeiramente quero. Talvez seja a melhor forma de ocultar verdades, que em nada me interessa divulgar ao mundo.

A mudança deste ano vai, em tudo, ser diferente das anteriores. Sem as gargalhadas dos amigos e a paixão de amores largados à gaveta do passado, os primeiros passos de 2010 vão ser dados entre centenas de desconhecidos.

Esta madrugada trabalho. Como em tantas outras. Mas com a peculiaridade de esta ser uma noite especial. A travessia para novos tempos sempre foi um marco importante na minha existência. É a altura de deixar para trás as insónias das quatro estações já passadas para abraçar os projectos que anseio para mim própria.

Nestas últimas 24 horas de 2009 vou estar a trabalhar. Arranco 2010 no mesmo estado. Talvez esta metamorfose de planos acarrete ventos e marés melhores que as anteriores.

Que 2010 chegue repleto de vida e emoções fortes.

23 dezembro 2009

distúrbios

Atravesso a passadeira vermelha. Passos largos. Descontraídos. Corpo hirto. Cabeça erguida. Altiva. Segura. Senhora de mim e musa dos outros. Sei que me observam. Deixo que o façam. Solto um sorriso matreiro, de quem sente no ar o desejo, fingindo não notar o seu odor. Não desvio o olhar e deslizo nesta aura de confiança.

Atravesso a passadeira vermelha como quem segura o mundo nos pés e o manipula à sua vontade. Atravesso-a rodeada de rostos em êxtase. Sei que me aplaudem. Que me invejam. Que se deixam encantar, serenos.

Atravesso a passadeira vermelha com ousadia. Sou elegante, mágica, única. E sei-o. Há flores espalhadas no chão que piso. Há um aroma a rosas que se expande no ar que respiro e me consome. Há um cenário de estrela criado para mim.

De repente, tropeço. Oscilo na minha resplandecência. Mancho-a com hesitação. Tiro os olhos do horizonte de brilho onde me fixo e para onde caminho. Sinto os pés a arrastar na passadeira. Passa o levitar com que me movia. Sinto os pés a arrastar na passadeira. Sinto-a ensopada pela chuva que teima em jorrar do céu. Está suja. As flores murcharam, enlameadas. E o requinte de rosas deu lugar ao cheiro da terra acabada de molhar. Os rostos viraram costas e partiram. Desiludidos.

A passadeira vermelha perdeu a altivez. Arrastou-me consigo. Nas ruas vazias de gente restou a podridão de uma cidade abandonada à madrugada escura e sombria. A plateia de fascínio desapareceu por completo, como se nunca ali estivesse estado. Foi substituída pelos sem-ninguém, vagabundos deles próprios, que apenas à tormenta pertencem. Silêncio. Volto a tropeçar e caio. Esfolo a alma de arrogância. Ergo a vergonha do chão. E acolho-me nos braços nus.

18 dezembro 2009

puzzles

Sou assumidamente uma pessoa obsessiva, que tende a pender para pólos opostos em intervalos de tempo tendencialmente curtos. Sou obsessiva, obcecada, roçando com alguma frequência o paranóico. Organizo-me coerentemente no caos. Vivo num caos repleto de lógica. Uma lógica tão lógica que apenas a mim faz sentido. E é esse o seu único propósito.

Sou obsessiva, obcecada. Chego a ser paranóica. Sou obsessiva quando me apaixono ou reapaixono por uma música. Ouço-a até à exaustão. Consumo-a até ao esgotamento. Absorvo-a até a detestar. Depois só regresso a ela quando esquecida a consequente sensação de intolerância à sua melodia.

Sou obcecada por malas. Adquiro-as de forma quase esquizofrénica. Uma de cada vez. E gasto-as até esgotar todos os vértices de tecido. Depois abandono-as numa gaveta que não voltarei a abrir durante meses.

Sou paranóica com objectos aparentemente insignificantes, dos quais não me consigo afastar. Num ataque exclusivo de sanidade pura e simples despejei o pedaço de mundo que carrego pendurado a tiracolo num só ombro. Encontrei peças variadas. Umas quantas absolutamente indispensáveis. Outras absurdamente necessárias. Entre elas figurava uma carteira atulhada de documentos tão importantes como talões de supermercado, recibos de multibanco, horários de transportes que nunca irei utilizar, cupões de desconto de iogurtes de que não gosto e palavras-passe de coisas que não me lembro o que são. Depois havia também uma máquina para medir a glicemia, um estojo com duas canetas de insulina, um saco com pacotes de açúcar, um maço de tabaco, dois isqueiros sem gás, um isqueiro funcional, um bloco de notas, um livro, um io-io de madeira, as chaves de casa, o leitor de mp3, quatro esferográficas que conhecia, uma esferográfica que não conhecia e um suporte para panos de cozinha. Sim, um suporte, daqueles de plástico, para pendurar panos na cozinha ou noutro sítio qualquer onde eles façam falta.

Esqueci todos os objectos extremamente necessários que me foram parar à mala por vontade própria. Foquei-me apenas nos dois únicos que não foram lá colocados por mim.

Percebi depois que, quer a caneta desconhecida quer o suporte para panos de cozinha me tinham sido oferecidos pela mesma pessoa, numa noite longínqua sem pretensões de amanhã. Por que me ofereceria alguém uma caneta usada e banal? Por que me ofereceria alguém um suporte em forma de gato para pendurar panos na cozinha? A resposta…. essa só eu a sei.

Uma coisa é certa. Aquela noite longínqua continuará sem amanhã. Outra coisa é também certa. Aquele suporte jamais servirá para pendurar panos na cozinha. A par com a dita caneta, é uma memória física daquela noite que ficou lá atrás. Longínqua. Sem amanhã.

17 dezembro 2009

pormenor

Tenho-o há tanto tempo que muitas vezes me esqueci da sua existência. Lembro-me que me foi oferecido algures quando ainda tinha 14 anos. 14 anos apenas. Há quanto tempo tive eu 14 anos? Parece-me uma eternidade, da qual tenho tantas memórias.
Foi-me oferecido pelo meu pai, num dia que nada tinha de especial mas que, à semelhança de todos os outros, tinha a peculiaridade de ser único e irrepetível.
Era um CD duplo. Glen Miller. O nome nada me dizia. A imagem de um senhor franzino de óculos redondos em nada me era familiar. E a orquestra que se apresentava como cenário fugia em muito ao leque dos meus interesses.
Aos 14 anos, tal como hoje, a música era uma espécie de necessidade crónica, tão poderosa quanto um vendaval no deserto, tão mágica quando a liberdade, tão aconchegante quanto os serões entre amigos e família.
Aos 14 anos não fugia à monomusicalidade do rock e do punk, ideologias que eu desconhecia na sua essência, mas que tinham sonoridades demasiado próximas das minhas buscas.
Não ouvi Glen Miller naquele dia. Nem nos que se lhe seguiram. Não ouvi Glen Miller naquele ano. Nem nos que se lhe seguiram. Não cheguei a ouvir Glen Miller naquela década. Nem sequer naquele século. Ou naquele milénio.
Mas aquele CD duplo, com letras gravadas a dourado que contrastavam com o preto e branco da capa, caminhou na bagagem de todas as minhas mudanças de casa, de cidade, de rumo e de vida. Porque sempre soube que, um dia, haveria um momento certo para o fazer ecoar numa sala. Há dias atrás soube-o, finalmente.
Há dias senti-me mal. Talvez por tantas vezes me gabar de maleita frívola alguma conseguir alcançar-me o corpo. Há dias senti-me mal, numa madrugada longa, de trabalho tardio e acumulado. Há dias álbum nenhum, de género musical algum, me deu a paz que precisava para escrever textos e textos obrigatórios. Há dias foi Glen Miller quem me serviu de consolo, entusiasmo e inspiração. E, desde esse dia, que continua a sê-lo.

16 dezembro 2009

escoceses

E para desanuviar esta aura de melodramas e melancolias que me tem assolado, cabe-me hoje comunicar uma infeliz novidade. Algo mudou. Não sei se eu. Se eles. Mas a verdade é que, apesar dos longos cabelos negros, dos corpos musculados, do kilt absolutamente másculo e do aspecto irreverente e avassaladoramente selvagem, os rapazes dos anúncios do William Lawsons já não têm o mesmo encanto.

14 dezembro 2009

vestígios

Não me lembro quanto tempo passou desde a última vez. Um dia deixei de contar os dias. Dias depois deixei de saber quantos haviam passado. Mas hoje voltei a fazê-lo. Ganhei coragem. E voltei a fazê-lo.

Diminuí a intensidade da luz. Quis esconder-me na penumbra da casa quase às escuras. Corri as cortinas. Fechei as janelas. Pousei, por instantes, os dedos frios sobre as pálpebras. Ouvi o silêncio lá fora. E cá dentro um palpitar desenfreado no peito. Só depois entreabri os olhos. Agarrei-me às réstias de coragem que ainda carregava. E aos poucos fui arrancando cada peça de roupa do corpo. Despi-me lentamente, cuidadosamente, ainda tímida, insegura. Soltei as alças. Desabotoei os botões. Deixei cair no chão tanto os tecidos como a bravura. Fiquei imóvel. Ali. Nua. Imóvel. Ali. Frente a mim. Nua. Imóvel.

Levantei o rosto do chão e olhei, por fim. Olhei-me ao espelho. Enfrentei-me ao espelho. Observei-me ao espelho. Encarei-me ao espelho. Olhei-me de um lado e do outro, quando consegui reconhecer, por uma fresta, aquilo que fui. Observei-me de um lado e do outro. E não me conheci.

Não me lembro quanto tempo passou desde a última vez. Um dia deixei de contar os dias. Dias depois deixei de saber quantos haviam passado.

10 dezembro 2009

aroma de natal

Tenho a casa a cheirar a Natal. A casa, para onde me mudei há um mês e que divido comigo mesma, já cheira a Natal. Não que o espírito desta época, pela qual passei a nutrir tão pouco carinho, me tenha subitamente invadido a alma e a vida. Não que me tenha deixado consumir por esta pseudo-magia tão descontroladamente contagiante. Não que o calor das luzinhas, bolinhas, velinhas e afins, que cintila por todas as esquinas, rostos e caminhos, me tenha amolecido as convicções.

Tenho a casa a cheirar a Natal. Tenho a casa repleta daquele cheiro indescritível e inconfundível que, durante os muitos anos da minha infância, abrigou as últimas noites de todos os anos.

Havia uma árvore de Natal na sala atarracada da casa dos meus avós. Havia presentes espalhados por todos os recantos, embrulhados e desembrulhados vezes sem conta pela curiosidade inocente de duas crianças. Havia o frenesim da minha avó Isabel, a preparar com mil cuidados a ceia dessa noite, a antecipar a compra do chocolate, que se bebia quente madrugada fora, e do vinho do Porto, que abria apetites de conversa após o jantar. Havia a passividade e a paciência do meu avô António, que trazia do campo o pinheiro mais vistoso que avistasse para que eu e o meu irmão o pudéssemos decorar atempadamente.

Havia a minha mãe e o meu pai, que trabalhavam arduamente quase até ao último instante mas que nos surpreendiam sempre com os brinquedos que queríamos, ignorando a possibilidade de algum dia os podermos vir a ter. Havia a minha tia Tóia, que trazia um saco de plástico a rebentar de tabletes. E a minha tia Titi, que nos presenteava com as mais originais invenções infantis surgidas na capital. Havia uma braseira por debaixo das saias da mesa redonda da cozinha da minha avó. Havia uma hora marcada para ir aos fornos do pão buscar as brasas que nos aqueceriam noite dentro. Havia um jantar de Natal em família. Éramos tantos nessa altura!

Havia o silêncio da televisão e o burburinho da nossa felicidade. No dia seguinte, acordávamos sempre tarde, exaustos. Todos nós, sem excepção. Mas no ar pairava ainda aquele aroma a festa, a família, a nostalgia e divertimento. E durante dias havia de se sentir o odor da velha braseira, que tardava a apagar.

Tenho a casa a cheirar a Natal. Não que o tempo tenha voltado atrás. Não que tenha regressado àquela cozinha, à sala atarracada à entrada da casa ou à vila que me viu crescer. Não que tenha ainda toda a família à minha volta. Não que tenha ainda toda a família.

Tenho a casa a cheirar a Natal. A casa onde habito cheira a Natal. Mas somente porque deixei queimar batatas-doces e fiz explodir o microondas.

07 dezembro 2009

cegueira

Houve um dia em que acharam que eu precisava de ser salva. Houve um dia em que acharam que eu era um desafio maior do que qualquer outro. Retirar do abismo e das teias da solidão uma rapariguinha frágil e insegura. Era esse o excitante objectivo pelo qual valia a pena arregaçar mangas e abrir caminhos. Porque, aparentemente, seria compensado. Era esse o motivo de luta que, cumprido, saberia melhor que qualquer outro. Missão impossível levada aos limites da força humana.

A história é bonita. As personagens, supostamente, interessantes. O guião… Esse é tão ridículo quanto irreal.

Talvez um dia me dê ao trabalho de explicar. Talvez um dia encontre paciência, disposição e vontade para elucidar mentes sonhadoras e embevecidas. Talvez um dia descubra as palavras exactas com que construir a frase perfeita, tão certeira que não tenha de voltar a repetir o seu conteúdo.

Longe de mim ser uma rapariguinha frágil e insegura. Longe de mim precisar que mãos algumas me prendam quando quiser saltar. Mas longe de mim pensar sequer em fazê-lo.

A solidão é um estado natural. O meu, pelo menos. Mas longe dela atormentar-me, aprisionar-me, sufocar-me. A solidão é companheira. É abrigo. É refúgio. É conforto. E ser uma pessoa solitária não implica que me sinta, necessariamente, só.

Pobres dos que julgam que me salvarão. Pobres dos que não têm olhos que alcancem mais do que o que a vista vê. Pobres dos que são tão egocêntricos que não se dão conta das suas ilusões.

Sugo cada um dos instantes da minha existência. Absorvo cada um desses momentos – os bons e os maus -,porque todos eles acrescentam algo de novo ao pouco que sei. E sim, também tenho dias de ausência, de antagonismo, de pouco alento. Porque, como todos os seres que dividem comigo este canto do mundo, sou humana.

03 dezembro 2009

sorte

Sempre fui uma miúda de sorte. E sempre o soube. E ter sorte é ter encetado um livro em branco. Ter sorte é ter preenchido páginas e páginas que se mantinham vazias. Ter sorte é ter inventado palavras inexistentes. Ter sorte é ter escrito uma história.

Ter sorte é tê-la escrito a duas mãos. Ter sorte é tê-lo feito com aparas de loucura, tinta de euforia e carimbos de felicidade. Ter sorte é ter afastado o medo. Ter sorte é não ter hesitado. Ter sorte é ter-te tido a meu lado.

É termos trilhado caminhos virgens. Descoberto universos imaginários. Percorrido estradas ocultas. Ter sorte é termo-nos aventurado. É termos ousado crescer. Com ganas de viver a vida.

Ter sorte é termos vencido. E vencemos porque ocupámos com uma amizade o recanto onde outrora vivemos um grande amor. E vencemos porque preenchemos com gestos maiores os vazios que fomos somando nas encruzilhadas. E vencemos porque tivemos a capacidade de nos reencontrar. Para seguirmos juntos caminhos opostos. Vencemos. Eu e Tu. Vencemos.

Havemos de escrever novos livros. Pintar outras páginas. Explorar novos trilhos. Havemos de crescer. De viver. De ilustrar outras histórias.

Mas aquela que iniciámos, há muitos anos, e que, um dia, julgámos ter chegado ao fim há-de ter novas letras e novas palavras – redesenhadas, redistribuídas, recriadas com novos alentos.

Porque ter sorte não é saber que questionas as minhas decisões ou motivações. Ter sorte é sentir o teu braço a apoiar o meu. Mesmo que à distância.

01 dezembro 2009

sonhos

“Temos Sonhos”, anuncia uma placa afixada em lugar de destaque junto ao balcão. Mal consigo manter os olhos abertos, tal o cansaço que me assola a alma e se estende ao corpo. Quero um café. Apenas um café. Acompanhado deste estado natural que é a solidão. Mas são aquelas duas palavras que, juntas, me chamam a atenção e me fazem despertar.

“Temos Sonhos”.

“Têm Sonhos?”, pergunto à senhora de ar desconfiado que me olha do outro lado da vitrina.

“É o que diz a placa”, responde-me secamente.

“Então, quero um, por favor. Um qualquer. Não, desculpe, dois. Meia dúzia. Uma dúzia, afinal.

É que aos poucos fui perdendo os meus. Não sei se cá dentro se pelos trilhos sinuosos das minhas vivências. Sei que os perdi e hoje quero-os de volta.

Pode aviar-mos, por favor. Todos os que tiver. E não precisa embrulhá-los. Quero consumi-los já. Todos. De uma só vez.”