19 fevereiro 2010

banalidade

Vejo-a entrar, saia e casaco a condizer, cores neutras, despercebidas, sapato de meio salto, mala pendurada nos braços erguidos que seguram o tabuleiro. Vejo-a caminhar com o corpo hirto, teso, controlado e desconfortável. A cabeça baixa, que a deixa ver apenas o soalho silencioso. Vejo-a percorrer os passos contados e recontados ao milímetro. A timidez facilmente conduz à obsessão. Sei que decorou cada um dos movimentos como se qualquer falha tivesse a capacidade de reforçar o embaraço que, inevitavelmente, já sente.

Vejo-lhe o cabelo imaculadamente penteado. Os fios esticados e reluzentes, presos com preceito numa espécie de colcheia. Aposto que o cheiro não é de flores. Laca. Necessária e antiquada. Vejo-lhe a pele mimada de adolescente, isenta de marcas ou sinais. Tão perfeita e ausente de vida quanto a virgindade do corpo já pouco jovem. Miro-lhe os olhos castanhos, banais, maquilhados sem garra, sob umas sobrancelhas meticulosamente arranjadas. E os lábios com um brilho tosco. As mãos são também de princesa. Brancas. Suaves. Sem vestígios de emoção. Anéis caros para ocultar a solidão. E, claro!, um verniz básico, daqueles que não transmite estados de alma ou de ser. Daqueles cuja ausência nem sequer se notaria.

Nunca a vira antes. Mas sei que são raras as vezes em que se faz acompanhar. Hoje é uma dessas excepções. Hoje traz aquela colega de trabalho ou aquela amiga da conhecida que encontrou por acaso ou a senhora com quem, acidentalmente, travou conversa e que agora convidou, sem ponderação, para almoçar. Hoje traz alguém para ocupar o vazio do espaço que a circunda e a engole. Sei que ainda não são amigas pelas conversas de circunstância e pela simplicidade dos assuntos. Sei que acompanhada se sente menos presa e sufocada. Hoje pode falar. Hoje tem quem a ouça. Conta como não tem tempo para estar descansada em casa por ter sempre a roupa para pôr e tirar da máquina, para engomar e dobrar, para empilhar e guardar. Conta como não tem tempo para sair e confraternizar por ter sempre o que fazer em casa. Há a roupa para pôr e tirar da máquina, para engomar e dobrar, para empilhar e guardar.

Nunca antes a vira. Mas imagino que tenha uma profissão rotineira. Talvez organize papéis num arquivo municipal, numa conservatória ou num registo civil. Talvez organize papéis, silenciosa e sistematicamente, num outro sítio qualquer.

Se a refeição correr bem, a colega ou a amiga da conhecida ou a senhora com quem travou conversa e que convidou para almoçar entra, sem perturbações, no escasso grupo a que chama de amigos. Torna-se importante e imprescindível.

Nunca lhe ouvi o nome. Mas vi-lhe a fragilidade. Há pessoas assim. Transparentes. Que anseiam o abandono da solidão e forçam, numa ingenuidade arrepiante, a existência de uma vida social.

Sei que hoje ela sorrirá ao adormecer, numa felicidade efémera. Hoje sorrio também eu por ela, na minha tentativa vã de expulsar os reflexos da mente que se espelham no rosto.

Sem comentários: