Na imparável dinâmica da vida abundam os encontros e os desencontros. Acasos. Arbitrariedades. Contornos. Partidas e regressos, fortuitos e acidentais. Os afastamentos são tão fatais quanto previsíveis. Inconscientes ou ingénuos, pouco importa.
.
Rio-me num silêncio introspectivo das surpresas agradáveis que talham o destino. E das desventuras incongruentes dos dias comuns. Sabe bem ver o mundo à distância da memória.
.
Hoje reencontrei a Dona Fernanda sem que ela me reencontrasse a mim. Não me incomoda que assim seja. Vi a Dona Fernanda. Mais jovem. Mais bonita. E certamente mais mulher do que algum dia foi. Sei que mudou de emprego há anos. Talvez já se tenha reformado. Talvez tenha mudado de marido ou arranjado um amante. Está mais jovem. Mais bonita. Mais mulher. A paixão tem destas coisas. Estende ao rosto a euforia desmesurada que se alastra no peito.
.
Lembro-me tão bem dela quanto de mim. Lembro-me das primeiras conversas, que nada tinham de acidental. Da linguagem carregada de simplicidade e humor. Desconcertante mas agradável. Sempre gostei da Dona Fernanda.
.
Aos 19 anos mudei a vida para uma cidade que nunca antes visitara. Foi a ponte entre o conhecido e o desconhecido quem ditou a minha escolha. A certeza de as gentes serem do Sul acentuou a implacável decisão.
.
Cada chegada implica a procura de um refúgio. O meu foi aquela gelataria junto à rotunda, entre a casa e a universidade, descoberta na primeira noite de liberdade maioritária. Quero um café com natas. E depois um café cheio e um copo com gelo. Se faz favor.
.
Centrada na decoração exuberante que ela própria criara, a Dona Fernanda sorria ininterruptamente, orgulhosa do seu ofício. Às vezes, lançava pragas ao patrão e aos clientes mais incautos, numa ladainha repleta de vocabulário poético. Chupe, chupe, menina, antes que derreta.
.
Perguntou-me de onde vinha. Por que vinha. Perguntou-me pelos namorados, pelos rapazes, pelos namoricos. Eram a sua perdição. Nunca soube o meu nome. Sempre fui a menina de Beja. Outras vezes a menina de Beja, dos cafés com natas e com gelo. Topping de morango. Se faz favor. Chupe, chupe, menina, antes que derreta.
.
A Dona Fernanda gostava de mim. Passava-me o gelo às escondidas numa chávena grande de chá para não ter de mo cobrar. O patrão dizia que, quem quer beber fresco, tem de pagar mais. Sovina.
.
Um dia encontrei-me casualmente com ela fora do balcão. Sovina, o velho. Fizera-a largar a gelataria. Não voltei lá desde então. Não há gelataria na rotunda, entre a casa e a universidade, sem a presença magnânime da Dona Fernanda, das suas histórias e do seu sorriso, que abrigava tanta espontaneidade quanta maquilhagem para a amargura. Chupe, chupe, menina. Antes que derreta.
2 comentários:
Malandra, essa D. Fernanda!!!
Nunca derreteu?!
Never.
Enviar um comentário