30 agosto 2009

crescer

Ele - Estás sentada?
Eu - Sim.
Ele - Então, encosta-te.
Eu - Ok.
Ele - Tira o cigarro da boca para não te engasgares.
Eu - Já está.
Ele - Estás preparada?
Eu - O que é que se passa?
Ele - Vais ser tia.

Acho que ainda não interiorizei. Acho que ainda não me mentalizei. Acho que o tempo parou naquele instante. Eu vou ser tia. Eu. Tia. Aliás, o meu irmão vai ser pai. O meu irmão. Pai. E eu, tia. E a minha mãe, avó.
Quando o meu irmão saiu de casa para viver com a namorada, eu já o tinha feito. Sete anos antes. Mas naquele dia achei que me o tinham roubado. Achei que era cedo para que ele arcasse com o peso de uma vida em comum. Achei que ele era demasiado novo, o meu irmão mais novo, sem me aperceber que nos separa uma diferença de apenas onze meses.
Hoje ele diz-me que vai ser pai. Que a nossa curta família vai ter mais um membro. Sangue do meu sangue. Do nosso sangue. E eu não sei o que pensar, o que dizer ou o que sentir, sequer.

Eu – Estás feliz?
Ele – Estou.
Eu – Estás preparado?
Ele – Não sei.
Eu – Parabéns, maninho.

Que o meu sobrinho ou sobrinha venha depressa. Estão demasiados braços à espera desse aconchego.

28 agosto 2009

sentenças

Viajo pelos dias com os pés arrastados à existência. Viajo ausente, numa sobrevivência apática que evito encarar. Viajo lenta e silenciosamente.
Shiuuu. Faz de conta que não estou cá. Que não diambulo nestas vagabundagens descomprometidas de obrigações.
Arrasto os pés à vida como quem a carrega num saco de esquissos. Como quem a sustenta sem mais nada. E deixo-me embriagar por uma liberdade electrizante. Cruzo caminhos alheios e sugo-os até ao tutano. Flutuam os membros deste esqueleto coberto por uma carne mole. E a mente foge.
Há algures um lugar para mim. Ao Sol, talvez. E todos os dias se acentua a certeza de que não é este. Existe um projecto de vida que os anos me têm vindo a fazer vislumbrar. Existe. E, embora longínquo, avizinha-se cada vez mais sedutor.

26 agosto 2009

buscas

Procurei. De um lado e de outro. Vasculhei gavetas e esvaziei baús. Dei uns passos em frente e voltei atrás. Revirei o corpo e a alma. A pele e a mente. As certezas e as ilusões. Mas continuei sem encontrar.
Acho que o perdi. Acho que, acidentalmente, deixei que me fugisse. Ou que me fosse roubado. Ou que eu própria o mandasse embora.
Procurei por todos os cantos da existência e continuei sem encontrar. Procuro o meu caminho. Se alguém souber do seu paradeiro é favor acender a luz e trazê-lo de volta.

25 agosto 2009

tempestades

Hoje o vento despertou enraivecido. Hoje saiu à rua, impiedoso, para devastar o universo e acordar os adormecidos. Hoje sopra a meu favor, atordoante, inquieto, intempestuoso. Hoje parece querer caminhar comigo. Talvez só por caminhar, sem meta delineada ou rumo traçado.
Hoje somos dois perdidos numa noite só. Hoje ele acompanha o meu desassossego. Hoje abraça a minha dúvida e afaga a solitária existência do meu ser. Talvez hoje me leve para longe.

24 agosto 2009

contornos

Acorda-se a cada manhã para um novo dia. Renasce-se mal o Sol se ergue. E dá-se início a um novo ciclo. Cada meta não significa um ponto de chegada, mas sim um novo ponto de partida, disseram-me um dia. E hoje nada me parece mais acertado.
Bebe-se cada gota de euforia e felicidade como se fosse a última. Persegue-se a loucura com ganas de a viver. E enfrenta-se, com garra, a tormenta da despedida e do recomeço. Lambem-se as lágrimas da ruptura. Do adeus. Do até um dia. E fica-se. À espera de mais um ciclo que há-de vir. Mais do mesmo. Hoje e sempre. Em etapas que se alteram e que conjugam sorrisos e agonias. A vida não passa disto. E há dias em que sabe bem vivê-la. Sabe muito bem vivê-la.

23 agosto 2009

o mesmo de sempre

“E agora o que fazemos?
O mesmo de sempre” já se ouvia em Pipas e Alcagoitas – a prova que o amor é eterno e outras estórias do inferno.
Já ela perguntava, ingénua. E ele respondia, conformado.
Vive-se o mundo dentro de nós. Viaja-se pelo mundo dentro daquilo que somos. Parte-se e regressa-se. Sem razão aparente. Sem objectivo. Sem fio condutor. Vive-se a vida e entrega-se-a a outros. Para que nos mostrem o que fazer dela. Para que lhe dêem um rumo ou um sentido. Para que a agitem ou a ponham no lugar.
Vivem-se os dias e as estações. Uns atrás dos outros. Umas a seguir às outras. Cresce-se com as horas e aprende-se com o tempo.
No corropio das manhãs ensolaradas há minutos que correm mais devagar. Que se expandem pelos poros da pele e se dilatam na magnânime energia dos sentidos. Há o estar vivo e o viver. Há estados que se cruzam e se afastam. E a impenetrável verdade de que a procura jamais deixará de existir.
E agora o que fazemos?
O mesmo de sempre.

21 agosto 2009

aconteceu

Houve uma noite de liberdade e um rapto acidental.
Houve uma viagem tardia e um jantar sob a lua.
Houve caipirinhas à beira-mar e conversas desenfreadas.
Houve sussuros e gargalhadas.
Houve gestos e olhares.
Houve danças e cantares.
Houve esperas e retornos.
Houve o mar como palco e as estrelas como actrizes.
Houve um adormecer fora de horas e um acordar anestesiado.
Houve banhos de sol e abraços de água.
Houve música e silêncio.
Houve o inesperado.
E houve uma despedida.
Houve quem partisse e quem ficasse.
Houve um sorriso ímpar e uma certeza partilhada. Mas singular.
A felicidade é um lugar estranho. E está sempre ali ao lado.

19 agosto 2009

sossego

Com o Verão quase a chegar ao fim e uma temperatura que apenas agora começa a fazer juz à estação que a acolhe, vou finalmente usufruir de uma noite de sossego. À semelhana daquilo que os anos me têm vindo a habituar não vou ter férias. Não vou ter um dia de folga sequer. Vou ter uma noite. Uma única noite livre. Uma noite que, sabendo a pouco, me vai preencher todos os pôros do corpo. Uma noite que me vai anestesiar a alma. Uma noite que me fará lembrar novamente de mim e daquilo que é estar vivo. Saber-me-à a férias. Saber-me-à a folga. Saber-me-à deliciosamente.

18 agosto 2009

o louco

Havia muito que o louco a olhava com olhos de são. Observava-a com um olhar diferente daquele com que encarava o mundo. Via-a com os olhos lúcidos que há muito haviam deixado de se perder entre os outros. Olhava só para ela. E sorria, deixando o corpo ausente de qualquer loucura ou embaraço.
- Um dia hei-de dizer-te que estou apaixonado por ti – sussurrou-lhe à passagem.
Voltou a deixar revelar um esboço de felicidade nos lábios e partiu. Voltaria no dia seguinte e lançar-lhe-ia exactamente o mesmo olhar, o mesmo sorriso e as mesmas palavras.
Talvez um dia ela acreditasse. E talvez noutro o deixasse de ver como louco.

15 agosto 2009

surpresas

Não é invulgar que se criem imagens pré-concebidas de quem se desconhece. Não é invulgar que eu o faça com alguma frequência e que me orgulhe do meu apurado sexto sentido para com determinados seres. Gosto de observar as pessoas. E de tirar as mais estranhas conclusões acerca das mesmas. Sempre me vangloriei de raramente me enganar. Mas hoje alguém me mostrou o contrário. Hoje alguém me surpreendeu.
Há muito que não acontecia. Há demasiado tempo que encarei como previsível as atitudes de quem me rodeia. Mas heis que hoje me surpreenderam. Heis que hoje conseguiram arrancar-me um sorriso, que se rasgou num rosto perplexo.
Hoje ofereceram-me rosas. Não uma. Não duas. Mas três. As únicas que o vendedor ambulante ainda tinha. Hoje um estranho ofereceu-me rosas. E eu nem sequer fui simpática.

14 agosto 2009

hoje

Arranha-se a pele com as unhas partidas pela tormenta. E rasga-se a carne, ferida mais por dentro que por fora. Cerram-se os dentes, que rangem num silêncio ensurdecedor. E ouve-se, mais uma vez, as palavras monocórdicas repetidas, vezes sem conta, em uníssono. Fora de ordem estão os pedaços de ser que, um dia, foram um todo.
Há pensamentos despedaçados. Memórias fulminantes. Vazios infindáveis. E certezas que teimam em fazer-se distantes. Há um corropio de destroços que se abraça. E pontas que caminham desalinhadas. Soltas. Perdidas.
Dancei no fio de uma navalha. E lambi a ferida que há ainda por cicatrizar nesta encruzilhada.
Hoje há espaço para correr sob o sol mas apenas destroços que se arrastam inquietantes.