29 novembro 2012

aterragem

A primavera sabia, de noite, já a verão. Cheirava a enigma e soprava mistério. Eu tinha alvoroços dentro do peito. Fantasmas desassossegados a entrar e a sair. A entupir-me a vista. Tinha vontades com pressa a esventrar-me a coerência. Caos sem rédeas a empurrar-me os passos. E o ruído que não se calava…

Há dias em que não estou bem em lado nenhum!

Talvez fosse o cheiro do mar. Ali tão perto. Selvagem. Indomável. Tentador. Eu tinha insónias e tumultos. Tinha tempo vazio. Ar oco. Pés inquietos. Liberdades encarceradas por dentro a forçar-me os ossos. A fazer exigências.

Há noites em que sufoco dentro de mim!

Era madrugada. E eu entrei sem sono. Duas mãos cheias de curiosidade. Imaginação. Um corpo inteiro a mendigar desordem. Ai! Afinal, o céu não é assim tão longe. Apanhei o voo. Embarquei e o mundo mudava nas ondas do cesto de um balão. Deixei-me levar, sem saber que, à aterragem, o chão teria um piso diferente.

Sabia lá eu que o amor era coisa para durar tanto tempo!

05 novembro 2012

compulsão


Um dia enfio as unhas na carne e arranco de lá de dentro a consciência. Um dia raspo os cantos da alma com a ponta dos dedos e lavo-os com a água corrente da chuva para que se desfaçam. Um dia cuspo de mim a culpa e encho as entranhas com pedaços velhos de cartão gasto.

Quando o ruído se tornar ensurdecedor e demasiado doloroso debaixo do peito silencio por fora o próprio silêncio. Quando o peso me começar a curvar os ossos e as vontades dispo-me de mim. E abro a jaula onde encurralei a língua, já contida em tumulto, e os gestos, que sufocam em agonia na inutilidade das normas.

Nesse dia rompo com a coerência e perco o juízo. Nesse dia enfio a tolerância num saco, juntamente com a solidariedade, a boa educação, as convenções e os protocolos. Bem atados para não libertarem odor ou suscitarem compaixão. Nesse dia liberto a raiva asfixiada com cautela e dou azo aos delírios.

E depois, em vez de me encher de cansaços e angústias, mando-vos a vós, e às vossas cobranças, todos à merda. Em uníssono e simultâneo, para que não se sintam sós.

Em vez de uma mão estendida, ofereço-vos logo as duas. Em forma de sopapo no meio do focinho e da vossa moral.

E, antes que as convulsões e os vómitos me forcem a bolçar-vos ainda em cima tudo o que realmente penso, entrego-vos a ausência, a paz e o sossego que tanto auguro. 

Ai, quando esse dia chegar…