14 maio 2010

verme

Ensoparam-se as compressas que arrastam a vida pelas veias. Quebraram-se de inutilidade as braçadeiras que as mantêm transitáveis. Os esguichos de energia, que outrora incandesciam e se reproduziam incessantemente, em rastilho, ressequiram. Minguaram. Murcharam. Absortos em si mesmos esvaíram-se, debilitados e inválidos.

Corre agora o ar desprovido de oxigénio e do seu propósito. Balança o cérebro destituído de fluidos e equilíbrio. Oscilam os dedos ao assentar nervoso da caneta frígida sobre o papel. Insanidade letárgica.

Adormeço forçada pela ausência de conteúdos com que ocupar o metódico correr do relógio. Adormeço ciente da ânsia que me aconchega no colo. Quero dormir só para dar ao tempo a oportunidade de se inverter e me restituir aquilo que me abandonou. Quem sabe acordo, hoje, talvez hoje, talvez seja hoje, será hoje?, recomposta e frenética. Viva.

O que fazes? Escrevo. Aliás, já escrevi. Agora já não. Mas já escrevi. Já me entretive a debitar letras de um qualquer alfabeto para as impregnar de sentido no branco de uma folha. Já disse tanto sem precisar que o corpo me mostrasse como o fazer. Já gritei tanto em silêncio. Agora já não.

Parece que a perdi. Parece que me largou. A maldita criatividade. Vício que satisfaz e corrompe. Que dá para depois cobrar. Que se aproxima, suave, e se afasta, sumptuosa e imponente, certa da dependência e do desejo causados.

Quero-a de volta. Quero-a a invadir-me de adrenalina o cinzento oco desta mente. Quero-a a fazê-lo manifestar-se, sedento, sequioso, ávido de funcionamento e utilidade.

02 maio 2010

escuridão

Cegueira. Alastrou-se a mim. Consumiu-me. Abafou-me. Corroeu-me. Envenenou-me. Embriagou-me.
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Sem me aperceber perdi a capacidade de olhar para além do que vislumbram os olhos. Deixei de ver. Ceguei. Entupi a visão. Ofusquei a vista. Encadeou-me a luminosidade que me cerca as manhãs. Roubou-me a clareza e a objectividade. Para me tornar os dias obscura e ingenuamente coloridos.
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Aqui andei. Às cegas. Tal toupeira a viver na escuridão. Tal avestruz a mergulhar mais que o olhar no negrume da areia. Embebi-me do que está próximo. Envolvi-me de facilitismos e evidências fúteis. Fixei a paisagem no meu próprio umbigo. E, anestesiada, deixei escapar valores imprescindíveis.
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Na rota atribulada deste caminho fui perdendo pedaços essenciais. Não recuperei nenhum deles. Não os substituí. Limitei-me a adaptar-me à sua ausência.
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Na mesma rota prometi cuidar dos outros. Para o meu próprio bem, certifiquei-me de que estavam por perto. Assegurei a sua segurança. Garanti tratá-los. Acarinhá-los. Protegê-los. Salvaguardá-los. Mantê-los unidos.
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Ainda pelo mesmo caminho mudei o foco do meu olhar. Cometi erros. Uma e outra vez. Indefinidamente. Ininterruptamente. Mais uma vez. De todas elas me arrependi. De todas elas tarde de mais.
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Hoje acordei. Talvez volte a adormecer. Mas hoje despertei. Precisei de um abanão, é certo. Mais do que de um sussurro ao ouvido. Precisei mais de um grito que de um beijo. Precisei que me agarrassem a carne e a sacudissem.
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Doeu-me. Magoou-me. Feriu-me. Lastimavelmente sei que, do outro lado, essa dor foi ainda mais violenta, mais feroz, menos meiga ou compreensiva. E lamento-o. Tanto como este sabor amargo que se intensifica em todos os poros da alma.
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Hoje quis dizer-lhe que vai correr tudo bem, sem ter como garantir-lho. No auge de todo este egoísmo descobri apenas um vazio imenso em cada palavra. Porque, na ausência dos meus actos, nenhuma delas é mais do que uma simples junção previamente definida de letras. Desabitadas de vida.