20 março 2011

(des)encontro

Desce-se a rua de calçada no sentido do tribunal. Contorna-se o passeio. Atravessa-se a Pontinha do lado de fora das arcadas. Percorre-se toda a Rua de Santo António. Deixa-se para trás o Coreto. Palmilha-se o passeio do porto de recreio. Passa-se o quartel dos bombeiros. Espreita-se o jardim do Centro de Ciência Viva. Atinge-se a tasca dos mariscadores. O olhar, esse, já preso ao longe.

E é depois, um pouco depois, passado o ponto exacto da Saudade de Água do Ene. É ali. Ali, no limiar entre a cidade velha e a Ria Formosa, naquele recanto roubado ao mar, que tantas vezes me procuro só para ter a certeza de que me vou encontrar. Sempre. Ali, naquele preciso local.

Por estes dias sonho já acordada com outros poisos. Trago as memórias do presente agarradas ao peito, temendo que ameacem as incertezas do futuro.

Arrasto um corropio de emoções antagónicas e esquizofrénicas que se misturam, ultrajam e completam. Tracei um caminho e vou trilhá-lo. Levo a solidão. Carrego as saudades embrulhadas na alma. Mas sei que esteja onde estiver haverá sempre um lugar a que possa chamar casa. Neste ou noutro sítio qualquer.

14 março 2011

agonia

Na ausência soberana das palavras engulo o silêncio. Mastigo-o. Devoro-o. Deixo-o fermentar cá dentro entre o espaço frouxo que resta do que já foi. Consome-me.

Ditador impune e impiedoso.

Na ausência castradora das palavras arremesso vazios, enquanto no vácuo fervilham afectos e pesares. Enrodilho emoções como quem espreme de um pano a sujidade. Mais do que qualquer outra dor, fere-me a incapacidade mórbida de fazer sarar as feridas. Nódoas negras que se arrastam do interior à frágil flacidez da carne. Se ao menos as palavras ainda libertassem. Se ao menos não fossem já inglórias...

Declino a impossibilidade de organizar letras sobre a brancura imaculada do papel. Recuso a implacabilidade com que me fogem as frases. Forço as tensões. Firmo a vontade. Combato. Enquanto aguardo o passar melancólico e demorado do tempo.

Talvez noutro dia.