24 setembro 2008

à menina dos olhos negros

Observo-a da varanda de casa, despertada pela voz suave que irrompe da rua entoando cânticos de amor lançados na escuridão. Observo-lhe as calças justas, a blusa curta e as sandálias de salto a condizer. Observo-lhe o aprumo da vestimenta encarnada que sobressai na monotonia e a forma descontraída com que agita a cabeça, fazendo rolar sobre os ombros as longas madeixas de cabelo preto.
Observo-lhe o pontapear das pedrinhas da calçada e a calma inquietação de quem parece nada temer.
-Hey, dear! – exclama ao sinal da minha presença. Lanço-lhe um sorriso e despeço-me com o piscar duplo de olhos que costumo lançar a quem me acarinha.
Prossegue solitária pela rua, àquela hora ainda vazia de agitação. Um dois, um dois, um dois… Salta as poças de água como uma criança e retoca o batom nos lábios com a ajuda de um espelho gasto pelo tempo.
Um dois, um dois, um dois…
Dança sozinha pela avenida, rodopia nos seus próprios passos e murmura canções que só ela parece conhecer. E prossegue. Um dois, um dois, um dois… alheia ao emaranhado de mundo que a rodeia.
Está uma noite fria e a clientela parece escassear. Não tarda o dia acorda para mais uma manhã.
Um dois, um dois, um dois… continua ela entretida no seu baile singelo, abalroado pelo silêncio. Ela parece-me ser feliz. Ou aparenta pelo menos estar feliz, inconsciente da sua inconsciência. Mantém no rosto um olhar de menina, que os dias apagaram do corpo mas não da alma. Mantém no rosto uma doçura desconhecida que contagia.
Esta noite observo-a mais uma vez, enquanto o fumo do último cigarro se esvai na neblina da madrugada. Alegra-me saber que sobrevive a cada novo dia e a cada nova manhã. Alegra-me saber que canta e dança feliz. E que sorri quando os primeiros sinais do Outono se começam a fazer sentir.

22 setembro 2008

click

- Diz que comprou um garrafão de aguardente e que está quase despachado! - confessou um.
- Ah, menina, a aguardente dá cabo de mim - murmurou-me entredentes quando lhe peguei nas mãos.
- Mas você é uma boa menina. É o que vale.
Momentos antes quis fotografá-lo. A ele e aos outros. Às conversas à porta do café. Às cadeiras do lado de fora encostadas à parede, onde ainda assomava o olhinho do sol.
Quis fotografá-lo segundos antes. A ele e aos outros. Às roupas de final de tarde. Às camisas engomadas e às calças com vinco. Aos sapatos de dias de festa. À pose de quem nada mais espera senão o lento transitar das horas.
Naquele momento quis imortalizar o quadro a que assistia. Mas ele caiu. E apenas a força da minha, ainda, juventude pôde ajudar a erguê-lo. Rodaram os rostos na minha direcção. Soltaram-se sorrisos singelos de agradecimento.
- Afinal, ainda há boas pessoas - disseram aos outros.
E o instante, aquele instante em que as minhas mãos carregaram o seu corpo escasso de carne tornou-se o motivo de conversa que antecedeu a última festa de verão na aldeia.
- Ah, Manel Cantigas, ficaste à espera que uma mocinha nova te viesse apanhar do chão. Ainda tu dizes que não vês...

17 setembro 2008

no mundo dos outros...

Aguardo a chegada do gaspacho que escolhi para jantar, na esplanada que habitualmente me acolhe nas noites tardias de terça-feira. Aparentemente invisível, escuto silenciosamente a discussão que se começa a gerar atrás de mim.
- 70 cêntimos um café é um roubo. Na Tavirense, que é uma esplanada chique, é só 60 - grita uma, com o estranho sotaque de quem não é da região.
- Deixa-te estar calada. Isso é alguma coisa?! Tens tanto dinheiro quanto eu - responde a outra, também ela exaltada.
De repente, levantam-se para sair e dão pela minha presença.
- Menina, você viu aquela notícia da criança que morreu no micro-ondas? Eu farto-me de chorar com isso. E ela a armar zaragata por causa de 10 cêntimos.
- É lamentável - digo-lhe eu, agarrrada ao livro que gostaria de continuar a ler.
- Olhe, você é que é uma menina muito bonita. É ou não é? - pergunta, então, à empregada, que manteve o silêncio.
- É mesmo muito, muito bonita. É que é mesmo. Olhe, felicidades é o que lhe desejo, que a menina é jovem e muito bonita.
E lá partiu, rua a baixo, repetindo em tom monorcórdico que eu era muito bonita.
E eu lá fiquei, sem vontade de voltar a ler, à espera do gaspacho com o confortável sorriso de quem vai vivendo no mundo dos outros.

16 setembro 2008

achados

Esta noite descobri uma coisa extremamente interessante. Descobri que há uma receita chamada "Dona Galinha foi à praia" e que, tanto quanto sei, é tipicamente algarvia, tendo origem em Portimão.
Não é giro eu viver no Algarve há seis anos, ser viciada em petiscos e nunca ter ouvido falar de tal coisa?
À pala de tão magnânime descoberta, hoje sinto-me muito pouco inteligente.

05 setembro 2008

se fosse eu que mandasse...

... ao destino que tinha preparado para grande parte dos políticos, religiosos e membros de agrupamentos de escuteiros, juntaria quase todos os paginadores de jornais que conheço.
E depois...
... booommmmm...
Encostava-os à parede e fuzilava-os.
Já não tenho pachorra para estes pseudo intelectuais com a mania que sabem muito de estética, design e o raio que o parta, e depois só fazem merda porque não sabem ponta de um corno de informação.
Ah! E alguns directores de jornais que também conheço, que tenham dinheiro, "mais de 20 anos de experiência" mas que só vêem cifrões e não sabem escrever uma linha...
... esses iam todos pelo mesmo caminho!
Pronto! Já me sinto muito melhor!