16 abril 2012

Pedro,

Comecei a escrever estas linhas a medo, movida pela necessidade maior de libertar o peso que a garganta sustenta, há já 730 dias. Talvez venhas a dar com elas. Aqui ou noutro sítio qualquer. Ou talvez seja eu a ler-tas, em tom de história, entre as aventuras da Lebre Lebrota ou do Preto Carvão e os Sete Gigantes. Um dia ouvirás falar deles, garanto-te!

Tenho um livro inteiro de palavras guardadas para ti. Tenho jogos que fui criando e contos concebidos no imaginário do quotidiano. Tenho músicas para te dar a ouvir e caretas que haveremos de aprender a fazer juntos. Temos tantas fotografias para tirar! Click click. Tenho a palma da minha mão ainda à espera dos teus dedinhos finos. E tenho um colo enorme que aguarda o teu abraço.

Dois anos depois daquele dia! Passaram dois anos à velocidade impetuosa do teu crescimento. E eu não sei ainda quais os primeiros vocábulos que lançaste ao mundo. Não sei ainda quando deste o primeiro passo nem em que altura te permitiste a aventura de correr. Não sei quando esfolaste os joelhos pela primeira vez nem qual o teu animal favorito.

Sei que não sabes o meu nome. Mas que hoje, pela primeira vez, quando to perguntei me chamaste doida. Sei que hoje falaste comigo. Sei que foram precisos quase dois anos para que me erguesses os braços e te içasses no aconchego do meu peito. Sei que quando sorris, mesmo que não seja para mim, o mundo inteiro poderia ruir que, nesse instante, eu mal daria por isso.

Sei que a tua melhor amiga se chama Constança e que eu também gosto dela. Sei que não te agrada trocar a fralda. Sei que adoras quando o pai te pendura na cabeça entre cócegas e beijinhos. Sei que gostas de adormecer no colinho da mãe.

Sei que gostas de bolas e tens medo de cães. Sei que comes bem. Sei que te entreténs com livros e papéis coloridos. Sei que fazes quase tudo o que te pedem. Sei que és doce e mimado. Sei que choras quando já estás exausto mas que não te incomoda o rebuliço de gentes pela casa. Sei que és desastrado e bates, vezes sem conta, com a cabeça nas paredes. Sei que cais mas que te voltas sempre a levantar. Sei que ris e choras, às vezes, quase simultaneamente.

Hoje, como em tantos outros dias, sei que não me conheces e que mal sabes que existo. E lamento. Hoje, como em tantas outras noites, sei que eu te conheço muito menos do que gostaria. E lamento-o ainda mais.

Talvez um dia me chames de Lisa. Lisa. Ou tia Lisa. Como achares melhor. Tu escolhes. São só quatro letrinhas e hás-de aprendê-las depressa. Podes chamar-me outra coisa qualquer se preferires. Por mim, tudo bem. Podes inventar um nome que eu responderei sempre, prometo.

Talvez um dia descubras o cd da Anja Garbarek que eu deixei dentro da caixa da tua Escolinha da Música há já algum tempo. Talvez te ensinem que a música torna o mundo e as pessoas melhores e que não é por seres, ainda, pequeno que te tens de cingir às cantigas infantis. Talvez um dia a avó Inô te dê a flauta que comprou mal nasceste e talvez aprendas a tocar nela. Talvez a mãe ou o pai te a retirem à noite para não acordares os vizinhos com as notas desafinadas que farás ouvir.

Talvez um dia entres no meu quarto, seja este de onde hoje te escrevo ou outro qualquer. Quando vieres, descansa!, podes derrubar-me todos os livros e riscar-me, com tintas e pincéis, todos os blocos de notas. Podes partir as velas em pedacinhos e fazer delas lápis de cera. Podes saltar calçado em cima da cama e, se quiseres, rasgar o candeeiro verde de papel. Podes abrir o roupeiro e despejar as gavetas. Se tropeçares nalguma peça de roupa ou arrancares os apliques dos cintos, não te preocupes, vou gostar ainda mais deles. Podes desenhar no tampo da secretária de madeira e fazer das revistas uma mesa para os teus brinquedos. Podes usar as minhas botas para guardar bichos-da-seda e utilizar as minhas caixinhas de memórias como canteiro. Eu não me importo.

Um dia hei-de contar-te de onde vem o teu nome. Hei-de mostrar-te como és, nesta idade, parecido com as fotografias antigas que temos do teu avô. Hei-de ler-te as palavras dele, longe de imaginar o teu nascimento. Hei-de falar-te dos laços que nos unem e explicar-te por que é que a avó é Inô. Um dia abriremos juntos o “Abraço” do José Luís Peixoto. Há duas crónicas que gostaria de ter escrito para ti. Ele fê-lo antes e bem melhor.

Hoje em dia digo a quem me rodeia que espero ardentemente os teus 15 anos. Não porque te queira a crescer depressa. Nada disso! Mas porque imagino que, nessa altura, me queiras já acompanhar aos festivais de música. Hei-de falar-te dos Doors, dos Alice in Chains, dos Pink Floyd, dos Nirvana, dos Pearl Jam e dos Placebo. Hei-de falar-te da Anouk, da Janis Joplin e da Nina Simone. Hei-de contar-te dos concertos a que assisti de Rage Against the Machine, Velvet Revolver, Bush, Stone Temple Pilots e tantos outros.

Hei-de também falar-te da Mariza (que ouço neste exacto momento – “Quando tenho dó de mim, e por contraste, tenho ódio ao mundo que nos separa assim”), do Jorge Palma e dos Toranja. Hei-de ler-te Pessoa e José Régio. Hei-de dar-te as “Histórias e Vagabundagens” do José Gomes Ferreira e o disco duplo de Glenn Miller que recebi aos 14 anos.

Talvez, se quiseres, aprenda a jogar futebol e te leve aos estádios. Talvez te conte as histórias de quando trabalhei no Sporting Clube Olhanense ou talvez fique apenas calada a ouvir-te.

Quero que saibas que eu não tenho muito jeito para crianças. Tu sabes disso! Quero que saibas que elas me amedrontam e que tu, assim pequenininho, o fazes mais do que qualquer outra. Quero que saibas que não sei fazer conversa de bebé e que talvez seja por isso que não gostas de brincar comigo. Quero que saibas que esta tua tia gosta tanto de ti quanto as outras mas que é um bocadinho desajeitada e insegura. Quero que saibas que ela precisa mais de ti do que tu algum dia precisarás dela. Quero que saibas que ela nunca tentará comprar o teu carinho mas que, em dia algum, desistirá dele.

A partir daqui, espero vir a saber o nome de todos os teus amigos. Quero saber o que comeste no infantário e se dormiste a sesta. Quero levar-te ao primeiro dia de aulas e saber se a fada dos dentes já te deixou um presente. Quero que me contes aventuras e, uma vez por outra, uma mentirinha qualquer.

Faz o favor de te juntares aos “Desafinados”, a banda que eu e o Zé Diogo pomos em palco todos os Natais na casa da Tia Mila e do Tio Nuno. Faz o favor de participar no jantar anual, igualmente entre mim e o Zé Diogo, de pizza e batatas fritas, com sobremesa de estrelitas e marshmallows, sempre na casa da tua avó Inô. O Zé Diogo aprendeu o jogo das palavras quando caminhávamos de mão dada para visitas à biblioteca, há talvez dez anos atrás. Agora quero ensinar-to a ti. E levar-te ao teatro, ao cinema, a fazer um piquenique, a andar de baloiço, a passear a Indie, a rebolar na relva junto ao castelo…

Quero que saibas que podes sempre contar comigo. Quero que saibas que não precisas sequer de me chamar. Porque esta tua tia “doida” estará sempre aqui.