23 fevereiro 2010

flechas

Diria o meu pai que me apresentava mais bruta que uma muralha de casas - sem estuque de delicadezas ou coerências. Diria a minha mãe estar perante a destravada do costume - uma carga de cavalaria tão destemida quanto inconsciente. Diria a minha avó que andava com a lua - nesta constante oscilação de humores. E o meu avô, sábio como todos os avôs, que estava instavelmente apaixonada. É assim que descrevem lá para os lados do Alentejo aquele estado indescritível de melancolia, agonia, inquietação, preocupação e desassossego, mesclado de uma paciência exaustiva, disparada num único sentido. No inverso desabam todos os dejectos, tal calamidades, que contornam esta aura de fictícia e efémera libertinagem mental.
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Desanquei o mundo na pele de um único ser. Gritei-lhe aos ouvidos na ânsia de que a mensagem atingisse mais do que o cérebro. Estremeci-lhe o universo. Abanei-lhe o cosmos. E só não lhe espanquei a alma porque não o queria realmente morto. Apenas gravemente ferido. Combalido o suficiente para acordar para a vida.
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Perdi todas as palavras que tinha guardadas. Atei-as umas às outras como um rastilho. Fi-las explodir abruptamente no rosto de outrem. Berrei verdades torturadoras. Maquiavélicas. Provoquei o desmoronamento de uma avalanche de franqueza que mal se aguentava quieta. Disse tudo como os loucos, sem pesares ou amedrontamentos.
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Deixei-me de amizades e protocolos. Deixei-me de favores, cerimónias ou etiquetas. Fiz fugir a tristeza, acobardada, ao sobrepor-lhe uma batalha unilateral de raiva. Sabia que a mais fraca acabaria por ceder. E cedeu. Não fui compreensiva. Não fui esquiva. Não fui companheira. Não fui amiga. Não tive paciência. Fui absurda e conscientemente má. Ofendi. Magoei. Humilhei. Maltratei. Se me arrependo? Nem um pedacinho.
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Por vezes são os piores sentimentos que ajudam a despertar os outros - os importantes. Por vezes é preciso um temporal de crueldade para fazer acordar os estupidamente adormecidos. É preciso guerra para eliminar a lamúria e os lamentos. E assim foi. A minha desumanidade, afinal, deu frutos.
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Agora só preciso de alguém com uma atrocidade tão genuína quanto a minha para me temperar de lucidez o dia em que hibernar, sonâmbula.

5 comentários:

Tiago Marcos disse...

A única diferença entre o teu texto e um poema é o facto das linhas chegarem ao fim da página, do ecrã neste caso…
A força, a verdade, o ímpeto, o fulgor da poesia respira-se a cada palavra que escreveste. E comento este texto dando a estas palavras o direito de serem aplicadas ao blog na sua totalidade, porque poesia talvez seja apenas uma maneira diferente de olhar… o mundo dos outros.

LiSa disse...

Soubesse eu escrever como tu.
Obrigado.
Abraço.

Anónimo disse...

One Needs to be cruel in order to be kind!

Luis Baião disse...

Há muito que não sabia nada de ti, eu sou estupido para estar a comentar o que li mas humilde ao ponto de o admitir. O que posso dizer é que o tempo parece que me escorreu entre os dedos enquanto lia o que escreveste(tempo que não tenho). Parabéns.

LiSa disse...

Obrigado. Mesmo. É bom saber-te de volta. Lá está o tempo - ditador implacável.