Tenho a casa a cheirar a Natal. A casa, para onde me mudei há um mês e que divido comigo mesma, já cheira a Natal. Não que o espírito desta época, pela qual passei a nutrir tão pouco carinho, me tenha subitamente invadido a alma e a vida. Não que me tenha deixado consumir por esta pseudo-magia tão descontroladamente contagiante. Não que o calor das luzinhas, bolinhas, velinhas e afins, que cintila por todas as esquinas, rostos e caminhos, me tenha amolecido as convicções.
Tenho a casa a cheirar a Natal. Tenho a casa repleta daquele cheiro indescritível e inconfundível que, durante os muitos anos da minha infância, abrigou as últimas noites de todos os anos.
Havia uma árvore de Natal na sala atarracada da casa dos meus avós. Havia presentes espalhados por todos os recantos, embrulhados e desembrulhados vezes sem conta pela curiosidade inocente de duas crianças. Havia o frenesim da minha avó Isabel, a preparar com mil cuidados a ceia dessa noite, a antecipar a compra do chocolate, que se bebia quente madrugada fora, e do vinho do Porto, que abria apetites de conversa após o jantar. Havia a passividade e a paciência do meu avô António, que trazia do campo o pinheiro mais vistoso que avistasse para que eu e o meu irmão o pudéssemos decorar atempadamente.
Havia a minha mãe e o meu pai, que trabalhavam arduamente quase até ao último instante mas que nos surpreendiam sempre com os brinquedos que queríamos, ignorando a possibilidade de algum dia os podermos vir a ter. Havia a minha tia Tóia, que trazia um saco de plástico a rebentar de tabletes. E a minha tia Titi, que nos presenteava com as mais originais invenções infantis surgidas na capital. Havia uma braseira por debaixo das saias da mesa redonda da cozinha da minha avó. Havia uma hora marcada para ir aos fornos do pão buscar as brasas que nos aqueceriam noite dentro. Havia um jantar de Natal em família. Éramos tantos nessa altura!
Havia o silêncio da televisão e o burburinho da nossa felicidade. No dia seguinte, acordávamos sempre tarde, exaustos. Todos nós, sem excepção. Mas no ar pairava ainda aquele aroma a festa, a família, a nostalgia e divertimento. E durante dias havia de se sentir o odor da velha braseira, que tardava a apagar.
Tenho a casa a cheirar a Natal. Não que o tempo tenha voltado atrás. Não que tenha regressado àquela cozinha, à sala atarracada à entrada da casa ou à vila que me viu crescer. Não que tenha ainda toda a família à minha volta. Não que tenha ainda toda a família.
Tenho a casa a cheirar a Natal. A casa onde habito cheira a Natal. Mas somente porque deixei queimar batatas-doces e fiz explodir o microondas.
3 comentários:
Ai rapariga...tu tens um dom qualquer...
Passei 2 minutos a comover-me...confesso até que uma lágrima dançou por aqui (memórias de natal...), estava já preparada para ir dormir com as saudades de qualquer coisa que ficou lá atrás...
E vou, vou com elas. Mas também com a gargalhada que me ofereceste ;)
Bj da Gaja
Concordo com a "gaja".
Uma estória tão comovente acabando com a tragédia final!
Á próxima, faz uns furos nas batatas com um garfo..antes de as pores no microondas.
Fica bem.
Obrigado pelas palavras. E pelos conselhos.
Beijos aos dois.
Enviar um comentário