num espaço que não me pertence. num mundo que não é o meu. eu. no mundo dos outros.
25 março 2010
panorama
22 março 2010
primavera
18 março 2010
infância
Era um miúdo irrequieto, travesso, avassalador de energia, humor e rebeldia. Perdi-lhe o rasto há quase uma década, depois de anos de uma vivência de partilha intimista de crescimento e descoberta. Seguimos caminhos opostos. Livre arbítrio, ávido de liberdade.
Reencontrei-o agora. O menino cresceu. Ganhou corpo. Maturidade. Objectivos. O menino cresceu. Fez-se à vida. Ao mundo. Optou. Fez-se homem. Mais do que algum dia eu serei mulher. Mas nos seus olhos amendoados de criança vive ainda um rapaz endiabrado, mascavado de sonhos por realizar.
Sei que olha, frenético, sobre os ombros. Inquieto, numa busca sequiosa mas consciente sobre o mundo que o acompanhou, à margem, sem que o tivesse cruzado. Sei que tem medo de duvidar do caminho que escolheu. De o pôr em causa. De hesitar. Mas sei também que o levará até ao fim, orgulhoso. Que percorrerá todos os trilhos que, um dia, achou serem os correctos. Sei que há uma nova pele a cobrir-lhe mais a alma que o corpo. Mas ele vive ainda lá por baixo, resguardado na bravura das missões.
Sei que voa alto todos os dias. Só não sei se o faz livre e feliz. Vezes houve em que quis voar como ele. No fundo, hoje queria apenas que ele – menino-homem - tivesse tido a oportunidade de voar na terra como eu, indiferente a valores de guerra e sobrevivência.
13 março 2010
fio
11 março 2010
O Canário
Chama-se O Canário e não foge à arquitectura medíocre, enfadonha e massificada de todas as ruas daquela zona da cidade. É a eterna diferença entre o velho e o antigo, o feio e o degradado. O Canário não é um café ou um snack-bar. Está tão longe de uma pastelaria como de uma tasca. O Canário é um antro imundo, resultado de uma sucessão de conjugações de mau gosto.
O Canário não é o meu espaço. Nada tem de meu. Não temos qualquer afinidade. À excepção desta indiferente e repugnante, mas cooperativa, coabitação. Ultimamente passo n’O Canário com alguma frequência. É um refúgio para os minutos em que me alheio dos olhares que já conheço.
N’O Canário não encontro o patrão. Aquilo tem mau aspecto e o senhor tem um estatuto a manter - aquele que conquistou tanto com o labor como com o fato e a gravata. N’O Canário não encontro as meninas bonitas e encantadoras do trabalho. Ali não abona requinte e elas não querem reconhecer que são devoradas com olhos de lince esfomeado. Não as censuro. N’O Canário não encontro amigos ou conhecidos. E é isso que me faz gostar de lá passar.
O Canário é uma espécie de taberna, onde não perdura nem a limpeza nem as gentes de bem. N’O Canário não há vinhos do Alentejo ou do Douro. Se antes era coisa de tasca, hoje é de clube. N’O Canário não há flutes de champanhe ou copos de uísque old fashion. N’O Canário não há pastelaria fina ou bolos à fatia. Não há quiches, tartines ou outras iguarias importadas. Não há o Público ou o DN. Não se fala do Programa de Estabilidade e Crescimento, TGV’s, Faces Ocultas ou outsorcing.
N’O Canário há homens a beber cerveja ao balcão. As mulheres escasseiam por aqueles lados para fazer brilhar a empregada tão sebenta quanto a tábua dos enchidos. Há velhos e novos a sorver os últimos tragos de Sagres directamente da garrafa. Há amendoins servidos de um saco industrial num pires que é usado e reusado sem artefactos ou ilusões de higiene. É assim porque sempre foi assim.
N’O Canário há apenas um casal que ali se senta diariamente à mesma hora. São moradores do bairro. Só podem ser. Vão a’O Canário por não terem ousadia para experimentar algo que não seja familiar. Ele lê o Record. Ela olha-o silenciosa. Olha-me a mim também, sempre que entro e que saio. Ela e os que bebem cerveja. Não que eu seja bonita ou atraente. Apenas porque não é comum entrarem forasteiros n’O Canário. Tratamo-nos com uma indiferença mútua, sem confrontos ou cordialidades. Daí mantermos esta relação saudável.
Já disse que a’O Canário não vai o patrão, as colegas bonitas e os colegas comuns, as pessoas de bem, os amigos ou conhecidos? N’O Canário não há o rapaz humilde e trabalhador do café da outra esquina, a dizer-me que todos os dias estou mais bonita. Ao menos, n’O Canário não tenho de repetir o pedido várias vezes por me virarem as costas enquanto falo. N’O Canário tudo é demasiado simples e é por isso que lá vou.