11 março 2010

O Canário

Chama-se O Canário e não foge à arquitectura medíocre, enfadonha e massificada de todas as ruas daquela zona da cidade. É a eterna diferença entre o velho e o antigo, o feio e o degradado. O Canário não é um café ou um snack-bar. Está tão longe de uma pastelaria como de uma tasca. O Canário é um antro imundo, resultado de uma sucessão de conjugações de mau gosto.

O Canário não é o meu espaço. Nada tem de meu. Não temos qualquer afinidade. À excepção desta indiferente e repugnante, mas cooperativa, coabitação. Ultimamente passo n’O Canário com alguma frequência. É um refúgio para os minutos em que me alheio dos olhares que já conheço.

N’O Canário não encontro o patrão. Aquilo tem mau aspecto e o senhor tem um estatuto a manter - aquele que conquistou tanto com o labor como com o fato e a gravata. N’O Canário não encontro as meninas bonitas e encantadoras do trabalho. Ali não abona requinte e elas não querem reconhecer que são devoradas com olhos de lince esfomeado. Não as censuro. N’O Canário não encontro amigos ou conhecidos. E é isso que me faz gostar de lá passar.

O Canário é uma espécie de taberna, onde não perdura nem a limpeza nem as gentes de bem. N’O Canário não há vinhos do Alentejo ou do Douro. Se antes era coisa de tasca, hoje é de clube. N’O Canário não há flutes de champanhe ou copos de uísque old fashion. N’O Canário não há pastelaria fina ou bolos à fatia. Não há quiches, tartines ou outras iguarias importadas. Não há o Público ou o DN. Não se fala do Programa de Estabilidade e Crescimento, TGV’s, Faces Ocultas ou outsorcing.

N’O Canário há homens a beber cerveja ao balcão. As mulheres escasseiam por aqueles lados para fazer brilhar a empregada tão sebenta quanto a tábua dos enchidos. Há velhos e novos a sorver os últimos tragos de Sagres directamente da garrafa. Há amendoins servidos de um saco industrial num pires que é usado e reusado sem artefactos ou ilusões de higiene. É assim porque sempre foi assim.

N’O Canário há apenas um casal que ali se senta diariamente à mesma hora. São moradores do bairro. Só podem ser. Vão a’O Canário por não terem ousadia para experimentar algo que não seja familiar. Ele lê o Record. Ela olha-o silenciosa. Olha-me a mim também, sempre que entro e que saio. Ela e os que bebem cerveja. Não que eu seja bonita ou atraente. Apenas porque não é comum entrarem forasteiros n’O Canário. Tratamo-nos com uma indiferença mútua, sem confrontos ou cordialidades. Daí mantermos esta relação saudável.

Já disse que a’O Canário não vai o patrão, as colegas bonitas e os colegas comuns, as pessoas de bem, os amigos ou conhecidos? N’O Canário não há o rapaz humilde e trabalhador do café da outra esquina, a dizer-me que todos os dias estou mais bonita. Ao menos, n’O Canário não tenho de repetir o pedido várias vezes por me virarem as costas enquanto falo. N’O Canário tudo é demasiado simples e é por isso que lá vou.

2 comentários:

luigiee disse...

Tenho lido muitas vezes o teu blog e esta é a primeira vez que te deixo um post!

Está brutal! li isto cerca de umas 20 vezes e digo esta um post do ca... nário!

obrigado por presenteares o mundo com tão boa literatura!

LiSa disse...

Obrigado, Luigiee. Por vires ver e por comentares.
Abraço.