23 janeiro 2010

manuscritos digitais

Tenho saudades de cartas. De as escrever. De as receber. Do trepidar nervoso das ausências. Da distância entre as partidas e as chegadas. Da caligrafia incerta que dizia mais do que as próprias palavras. Dos estados de espírito denunciados a cada letra, escrita tanto pelas mãos como pela alma.
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Tenho saudade dos cheiros. Das cores. Do papel marcado de emoções. Dos vestígios das viagens. Daquele desembrulhar energético das folhas dobradas com preceito.
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Havia nas cartas um misticismo difícil de repor noutro tipo de contacto. Havia nas cartas algo de mágico. De único. De perpétuo. As cartas não tinham cópias. Não guardavam registos ou utlizavam ferramentas de correcção. Surgiam repletas de indições do que queriam transmitir ou ocultar. Singulares.
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Escrevi cartas durante anos. Reciba-as durante o mesmo período. Guardo-as a todas. As de amores infantis. As de aventuras delinquentes. As de amizades insolúveis. As de paixões longínquas. As de saudade. Ai, as de saudade!
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Nunca me rendi totalmente à evolução dos tempos e das tecnologias. Nunca deixei de escrever à mão. Em blocos de notas. Folhas soltas. Guardanapos de papel. Nunca deixei de entregar bilhetes. Deixei apenas de os remeter por correio, em envelopes selados com o que de mais genuíno há em cada um de nós - o ADN.
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Adaptei a mim o avanço tecnológico. Cinji-o às minhas necessidades. E, não deixando que me domine, reconheço o tanto que me trouxe. Permitiu-me reencontros que já não julgava possíveis. Permitiu-me reaproximações, outrora largadas à deriva. E, não tendo o aroma da correspondência material, ajuda a minimizar os estragos do afastamento.

20 janeiro 2010

dicotomia

Encontro regularmente as mesmas pessoas no sítio onde vou almoçar quando tenho demasiada preguiça para ir a casa. Tenho por hábito sentar-me na esplanada, na primeira mesa à direita da porta. Não que a vista dali seja melhor. Nem que o espaço se encontre mais abrigado das imprevisíveis vontades meteorológicas. Sento-me ali porque sim, sabendo que nos lugares ao lado se sentará sempre o mesmo grupo, sempre à mesma hora. São professores. Todos eles, sem excepção.
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Ouço-os repetir dia após dia as mesmas histórias, as mesmas situações, as mesmas conversas. Ouço-os discutir semana após semana os mesmos assuntos, os mesmos problemas, as mesmas dificuldades. Os putos, os pais dos putos, os amigos dos putos, as festas dos putos, as porras dos putos, as empregadas de limpeza, as fichas de trabalho, as fichas de avaliação. Sei que são professores. Novatos, na sua maioria. Sei também que à sexta-feira é o dia em que concedem a si mesmos o direito de comer um bolo à sobremesa. Aborrecem-me. Sobejamente.
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Basta olhá-los uma única vez para perceber quem é o líder. Basta observá-los uma única vez para perceber quem é o solitário, incompreendido e vitimizado, que tenta a todo o custo ascender ao posto hierárquico que cada um dos outros ocupa. Basta vê-los de soslaio para perceber que os restantes se limitam a manter os míseros lugares centrais, sem que daí advenha qualquer poder ou interesse.
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Entre eles há apenas um homem. Pelo menos deve ser o que indica aquele quadradinho do Bilhete de Identidade destinado à definição do sexo. Não me considero preconceituosa. Pelo menos de um modo geral. Não me abstenho, no entanto, do direito legítimo de não gostar de determinado tipo de pessoas. E faço-o precisamente pelas razões que, por norma, se apontam como ausentes de preconceito.
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Não gosto das pessoas pelas suas orientações. Escandaloso? Sejam elas de carácter sexual, cultural, religioso, político ou qualquer outro que sirva de pretexto para opções ou estilos de vida.
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Não justifico a minha inércia ao preconceito pelas amizades que tenho firmadas com heterossexuais, homossexuais, bissexuais, brancos, pretos, amarelos, católicos, ateus, muçulmanos ou defensores de modelos políticos mais ou menos entre a esquerda e o centro. Fazê-lo seria julgá-los como animais de estimação ou meros objectos decorativos da estrada da vida. Ridículo? Admito então: sou preconceituosa.
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Não gosto de bichas. Não gosto de gente mal definida. Não gosto daqueles que não sabem sequer o que são. Não gosto de pessoas espampanantes. Não gosto de pobrezinhos. Não gosto. Assumidamente. Não tenho paciência. Não gosto dos mal definidos como não gosto de gajas aparentemente tão doces como a baba de camelo nem de gajos aparentemente tão prestáveis quanto um lenço de assoar.
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Não gosto dos mal definidos. Como não gosto de quem não toma banho, de quem chama nomes aos idosos que conduzem a 15 km/hora no centro da cidade ou de quem me tenta passar à frente na fila da padaria, do quiosque e do supermercado. Não gosto dos mal definidos. Como não gosto de marisco, ovos estrelados ou canela nos pastéis de nata.
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Não gosto daquele mal definido em especial. Por oscilar entre o repúdio da sua visível condição e a inveja das colegas que nasceram com a sorte de ter um F no quadradinho do BI. E não, também não gosto das professoras. Havia entre elas uma que me era conhecida. Felizmente teve o bom senso de mudar de companhia e de local para almoçar.
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Aquele grupo aborrece-me. Tanto ou mais do que ter ficado sem música no período de almoço e ter gramado com as conversas, os risos e os lamentos alheios.

18 janeiro 2010

estupidez

Estupidez. É ter avariado, logo pela manhã e sem qualquer razão aparente, o leitor de MP3 que me ofereceram a semana passada.
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Estupidez. É ter passado oito horas no trabalho a fazer telefonemas tão aborrecidos quanto inúteis e chegar ao final do dia sem perceber por que razão estou precisamente no mesmo ponto em que comecei.
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Estupidez. É sair cansada com o caminho delineado até casa e parar num daqueles espaços comerciais de estrangeiros tão terceiro mundistas quanto aliciantes.
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Estupidez. É não gostar de usar leggings desde os oito anos de idade e ter decidido comprar umas. Pretas. As únicas que existiam e que, miraculosamente, não salientavam a meia lua que se instalou no meu ventre outrora delicado.
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Estupidez. É doerem-me as costas de tantas horas passar sentada no chão da sala.
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Estupidez. É ter devorado uma fatia de salame e subitamente me ter lembrado que deveria fazer desporto. Nesse exacto momento.
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Estupidez. É vestir as amaldiçoadas leggings e sair de casa cheia de energia. É ter estado sol o dia todo e começar a chover assim que o meu corpinho pouco delineado passa a ombreira da porta. É uma irritante amostra de cão me ter mordido. É o estúpido do animal me ter rasgado as estúpidas das leggings novas que nunca devia ter adquirido. É olhar para o relógio na ânsia de já terem passado os minutos suficientes para a prática diária de exercício físico. É ter regressado a casa apenas 720 segundos depois de ter saído. É chegar com o coração a saltar-me do peito, a alma a contrair-se de vergonha, as leggings rasgadas, a usual dor nas costas à qual se junta agora um cansaço extremo nas pernas. É ter comido uma sandes mista enquanto cozia os legumes para uma salada levezinha.
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Estupidez. É estar aqui, derrotada, a lamentar-me das dores e do desgaste, em vez de escrever o guião do programa de televisão que, imperetrivelmente, tenho de gravar nas malfadadas terças-feiras.

16 janeiro 2010

imagem

Mudei-lhe a cara. Pintei-lhe o rosto. Renovei-lhe a imagem. Já não o suportava assim. Já não conseguia olhá-lo com a mesma paixão. E nutrir por ele o mesmo carinho. Mas, no fundo, tem a mesma essência. A mesma alma. A mesma linha.
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Continua a ser a minha noção do mundo dos outros. Daquele vai abrigando o meu e cruzando-se com ele esporadicamente. Assim será. Assim continuará a ser.
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Pelo caminho foram ficando histórias e vagabundagens. Pelo caminho larguei deambulagens e acessórios. Hoje, pelo caminho, perdi algumas aplicações. Dava jeito saber como voltar a adquiri-las.

escolhas

Sexta-feira. 16 horas. Uma explosão num centro comercial em Tavira. Na redacção soube-se às 17. Trabalho. Adrenalina. Merda. Dois feridos. Prognóstico reservado. Merda. O Vasco trabalha lá. Merda.
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Arrumo tudo o que preciso e que se encontra sempre espalhado pela secretária. Preparo-me para ir para o local do acidente. Ponho o saco ao ombro e agarro no telemóvel.
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Não liguei para a administração do centro comercial. Não liguei para as entidades policiais, para os bombeiros ou para o hospital. Merda. É o Vasco que trabalha lá. Merda. Liguei ao Vasco.
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Deixei a informação para segundo plano. Deixei o meu trabalho de lado. Esqueci-me do meu papel naquele momento. Merda. O Vasco está lá. Só depois de ouvir a sua voz e de saber que ele estava bem é que agarrei na lista de contactos e fiz o que era suposto.
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Se fui uma boa profissional? Talvez não. Se fui uma boa jornalista? Provavelmente não. Se tomei a decisão correcta? Certamente que sim. Adoro o que faço. Fazê-lo enche-me os poros de vida. Mas primeiro estarão sempre as pessoas e nunca as situações. Primeiro estarão sempre aqueles de quem gosto em detrimento de tudo o resto que eu possa gostar de fazer.

15 janeiro 2010

irritada irritante irritável - parte I

Irritada. Irritante. Irritável. O conceito não é meu. Não é novo sequer. Mas num dia como o de hoje foi preciso rebuscar nos chavões dos outros aquilo que não consegui ver ao espelho logo pela manhã.
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É assim que me sinto. Irritada. Irritante. Irritável. Durante 24 longas horas, com especial incidência no período que une o amanhecer ao anoitecer. Pior: mais do que irritada, irritante e irritável, hoje andei especialmente impulsiva, descontroladamente destabilizadora, angustiadamente egoísta e estupidamente imparável.
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Acordei inquieta. Irrequieta. Incomodada. Incontrolável. Senti-me outra vez aprisionada. Aprisionada por uma situação que, irremediavelmente, criei. Não suporto sentir-me prisioneira de mim própria.
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Início mais uma luta. Dou arranque a mais uma batalha. Impulsiono mais um combate. Atingo os outros com uma avalanche de sinceridade, honestidade e frontalidade. A verdade é dolorosa. Talvez seja necessária. Mas hoje nada mais foi que obrigatória. Magoo já para não ferir depois. A imprevisibilidade causa um impacto mais aterrador. Atordoa. Derrota mais facilmente. Mas também ajuda a erguer em menos tempo.
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Peso número 1 libertado do corpo. Não poderia carregá-lo durante todo o dia. Livrei-me dele pela manhã. Forço as correntes com leveza e elas cedem. Não se soltam. Mas cedem um pouco. Não suporto sentir-me prisioneira de mim mesma.

12 janeiro 2010

distâncias

Entre elas espaçaram dias. Meses. Estações. Não muitas, no calendário da história e das histórias. Uma infinidade delas, no calendário do que palpita entre a carne e os ossos. Duas perguntas. Formuladas exactamente com as mesmas palavras mas em circunstâncias distintas. Sob perspectivas diferentes. Entre elas espaçaram dias. Meses. Estações.
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Entre elas não distou um único sopro. As respostas. Lançadas com a velocidade inalcansável de quem fala com a alma. Foram sobrepostas sem falhas. Soltaram-se com uma frontalidade irracional e infantil. Emergiram sem dar tempo à mais implacável das dúvidas. Desafiaram a incerteza. E venceram.
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Houve apenas uma resposta. Devastadora. Certeira. Imatura. Inata. Única. Ainda única. Ainda a única.
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Onde estaria se todas as hipóteses fossem válidas?
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Talvez um dia - esse, sim, distante em todos os mapas do tempo - tivesse ponderado a inúmera quantidade de escolhas e destinos. Talvez um dia - distante em todos os mapas do tempo - me deixasse invadir pela complexidade da decisão e pelo peso das motivações.
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Mas hoje, como há dias, meses e estações atrás, a resposta é tão singular quanto descomplicada. Tão juvial quanto tentadora. Tão inconfundível quanto asfixiante. Por ser tão livre de razão, lógica ou coerência. Por ser apenas dotada de uma inconsciência emocional extrema.
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E hoje, como há dias, meses e estações atrás, essa parece ser a única linha que se mantém recta ao correr dos minutos, neste emaranhado de nós que tantas vezes me sufoca e me aconchega.

11 janeiro 2010

fim-de-semana

Dois dias de serviço onde houve trabalho e lazer. Dois dias onde as horas de sono voltaram a escassear. Sobraram as de sonho, que vão colmatando lacunas.
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Fim-de-semana com informação matinal. Fim-de-semana com espectáculos de dança e companhia de amigos. Fim-de-semana de mar revolto e lua coberta. Fim-de-semana de chuva e frio. Por fora. Apenas. Fim-de-semana de futebol. Fim-de-semana de voltar a cheirar o relvado. Fim-de-semana de reencontros.
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Fim-de-semana de merda - quando se tem de pedir autorização à entidade patronal para mudar a cor de cabelo. Do meu cabelo.
Fim-de-semana genial - com um reconhecimento no blog diariodeumagaja.blogs.sapo.pt
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Fim-de-semana de tudo.

08 janeiro 2010

títulos

Já soube o seu nome. Já consegui definir este estado de uma forma tão minuciosa quanto aquela com que conto os últimos cigarros num maço de tabaco. Já o conheci por dentro e por fora. Antes e depois de tudo e mais alguma coisa. Depois cansei-me. Abandonei-o. Ou deixei que me soltasse. Perdi-lhe o rasto. Perdi a paciência. Perdeu a piada. Tenho dificuldade em lembrar-me porquê.

Mas como se chama? Não me lembro. Qual é mesmo o nome que se dá àquilo? Àquela única mistura de sensações? Porra. Já sei. Subitamente ocorreu-me. Ressaca. Merda. Já me lembrei porquê.

07 janeiro 2010

aversão

Há um guarda-chuva que não é gigante. Há um guarda-chuva no qual se abriga um número restrito de corpos, que em dia algum serão consumidos pela adversidade. Nele não cabe o mundo. Nele não cabe também o eterno acumular de torrentes. Nele cabemos apenas nós. Os poucos que somos. Os poucos que ainda vamos sendo. Os poucos que queremos ser.
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Soprarão fortes os ventos nos desertos. E cairão avalanches de chuva ao longo do percurso. Mas nem uns nem outros se atreverão a invadir o recanto protegido. Aqueles que o tentarem sairão tão ilesos quanto fragilizados. Aqueles que o ousarem escaparão tão imunes quanto indefesos.
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No guarda-chuva que não é gigante não cabe o mundo. Talvez não caiba mais ninguém. Os que tentarem usurpá-lo não receberão quaisquer frutos. Serão mal sucedidos. Porque o espaço escasseia até para os mais audazes.
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No guarda-chuva onde não cabe o mundo há aversão a intromissões.

05 janeiro 2010

choque

Estou em estado de choque. Sem voz. Sem fala. Sem palavras. Sem reacção. A empresa para a qual trabalho mandou fazer um calendário anual e eu sou, nada mais nada menos, do que a miss Julho. Entre todos os meus colegas, entre as miúdas giras que apresentam programas de informação interessantes, entre um milhão de imagens que constam no espólio da entidade patronal, eu, que sou conhecida pelo desastre que me costuma acompanhar, fui escolhida para figurar no mapa dos meses do ano.

PORQUÊ?

sensatez

A entrada num novo ano surge sempre envolta em réstias de esperança. Tempo de mudança e recomeço. Tempo de separar o passado do futuro, pela linha ténue do presente. As viragens simbolizam metas. Às quais se seguem aquelas que ainda há por alcançar. Não existem pontos de chegada. Apenas novos pontos de partida. As esquinas acarretam esperança e esperanças. Alento. Vontades e motivações. Força. Energias e sinergias. Garra. Desejos e compromissos. São, simultaneamente, um fim e um início.
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Tornou-se recorrente não fazer planos. Pura cobardia. Sem planos não há medo de falhar. Mais: não há medo de ter de admitir a falha. Cobardia dupla. Tornou-se recorrente não fazer promessas. Cobardia, mais uma vez. Não carregar o peso da responsabilidade necessária para mantê-las.
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Mas há passos que vou querendo dar. Muitas vezes aos trambolhões, é certo. Com desequilíbrios e algumas quedas. Mas que quero ir dando. Vou abrindo frestas na cápsula que criei. Vou dando tréguas nesta guerra com o mundo. Vou fazendo as pazes com a atmosfera. E restaurando relações pouco íntimas com o meio que me envolve.
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Vou diminuindo a intensidade das fugas. E entreabrindo as portas do refúgio. O ar tem de circular. Não posso ser só eu a consumi-lo. Há que renová-lo. Há que dar-lhe espaço. Eu tenho o meu. E sempre o terei. Mas neste novo arranque talvez haja um canto para os outros. Para os outros que são os mesmos. E é tão bom sabê-los assim. Talvez seja tempo de voltar a misturar o mundo com o dos outros. Em vez de torneá-lo. Talvez este seja o primeiro sinal de sensatez nos últimos tempos. E é tão bom vislumbrá-lo.