Viver no Interior do país implica que tenhamos, demasiadas vezes, de nos contentar com o medíocre. Incapacitados pela impossibilidade de escolha, somos constantemente recordados do patamar de inferioridade em que nos encontramos, que conduz a uma inevitável aceitação. Há o “nós” e o “eles”. Perante a ausência de “outros” que nos sirvam de alternativa, consentimos a cegueira e rendemo-nos. Somos escravos da nossa própria condição. Reféns e carrascos de nós mesmos.
A teoria da evolução das espécies
de Darwin dita a sobrevivência do mais forte. Assim é também no jogo de
mercados. A competição induz a melhoria. E a possibilidade de escolha de quem
consome liberta. A liberdade instrui e capacita. E ao aumentar o poder de uns,
reduzindo o monopólio de outros, minimiza o fosso que nos separa “deles”. Mas
não aqui. Não neste Interior, onde a baixa densidade populacional nos remete
para a categoria de inexistentes.
Exigir direitos implica, aqui,
medir consequências. Como se os direitos não o fossem. Mendigamos o medíocre na
certeza de sem ele nada termos. Comemos a côdea dura e seca porque, há muito,
perdemos o gosto ao pão. À fraqueza do estômago junta-se a revolta da alma. E o
silêncio, que só grita por dentro. Somos “nós” a depender “deles”. Somos “nós”
a precisar “deles”.
No Interior do país, neste Alentejo
de solidão e Sol, a mãe é, à quarta, alvo de uma intervenção cirúrgica complexa
do foro oncológico. À quinta de manhã vomita no piso, como consequência da
descompensação de uma doença crónica de que é portadora. É-lhe, ainda assim,
dada alta, quando a temperatura exterior se aproxima dos 40 graus.
É entregue à filha numa
cadeira-de-rodas no interior do átrio do hospital, com a informação de que se
encontra muito mal disposta. Colapsa no momento em que se levanta e permanece a
vomitar no chão. A cadeira-de-rodas havia voltado para a origem no instante em
que a deixara. Não havia outra onde a colocar. Pede à recepção que telefonem
para o piso. Dizem-lhe que, apesar de ainda se encontrar no interior do edifício,
com alta dada o protocolo a encaminha para as Urgências. Perante a recusa, uma
enfermeira vem buscá-la e leva-a novamente para o piso. Não lhe é feito
qualquer tratamento nem pedido o parecer da Medicina Interna. A cirurgia correu
bem e o lugar dela é em casa. Naquele quintal não há mais espaço e os outros
têm donos próprios. É de mau tom incomodar, que o excesso de trabalho já abunda.
Neste mesmo Interior do país, à
sexta de manhã a mãe tem novamente alta, antes sequer do clínico a ter visto. O
documento estava passado desde o dia anterior e é preciso racionar recursos. A
filha pede para falar com o clínico, que se recusa a atendê-la por telefone.
Vai presencialmente ao seu encontro e implora que deixe a mãe permanecer mais uns
dias sob observação, pelo menos até controlar os vómitos e as tonturas. Neste
Alentejo de solidão e Sol implora-se. O acesso a direitos não é um direito mas
uma regalia.
‘O risco de infecção aumenta a cada
hora que ela passa no piso’, diz o “ele”.
‘O risco de infecção aumenta exponencialmente
se for necessária uma passagem pelo serviço de urgências, como se prevê que
aconteça daqui a umas horas’, diz o “nós”.
Aos 40 graus a filha recusa tirar
a mãe do hospital. Fá-lo, por falta de opção, quando o Sol se aproxima do solo.
A sintomatologia mantém-se. Três horas depois a filha liga para o hospital.
Dada a cirurgia complexa realizada havia pouco mais de 48 horas e a existência
de uma doença crónica descompensada, é informada que deve levar a mãe ao
serviço de urgências.
‘O risco de infecção aumenta exponencialmente
se for necessária uma passagem pelo serviço de urgências, como se prevê que
aconteça daqui a umas horas’, havia dito o “nós”.
Por falta de opção, neste
Interior do país, onde somos escravos de nós próprios, a filha liga para a
Saúde 24. A Saúde 24 opta por chamar o INEM. O INEM opta por levar a mãe ao
serviço de urgências.
A filha não pode gritar. E a
culpa é uma magana solteira, que seduz sem se prender. Neste Alentejo de
solidão e Sol, consentimos porque não existem “outros” que nos salvem “deles”. A mãe passa a noite nas Urgências, sem que lhe
apareçam ao pé quando necessita.
Ao sábado a mãe permanece com náuseas
e tonturas, sem ser medicada na sequência da cirurgia nem para a doença crónica
de que é portadora. A filha pede explicações. À mãe é novamente sugerida a
alta. Mantinha as náuseas e as tonturas mas não havia vomitado a sopa. Era o
suficiente. Para o “eles” ela estava boa. A filha exalta-se e recusa. Acusem-na
de abandono mas a mãe não regressa a casa sem estar tratada.
Na Cirurgia não há camas para o
internamento. A filha pede que o façam na Medicina Interna. A responsabilidade
é da Cirurgia. A responsabilidade é da Medicina Interna. Mas a exigência de
falar com os dois clínicos em simultâneo não é ouvida.
Na madrugada de domingo a filha
retorna a casa para dormir no conforto da sua cama. Única e exclusivamente
porque lhe garantiram que a mãe, alvo de uma cirurgia complexa havia três dias e
com uma doença crónica descontrolada, passaria a noite numa maca no SO e não na
cadeira onde estava desde a madrugada anterior. À mãe foram retirados todos os
pertences pessoais para poder ficar em observação. A filha dormiu descansada
sem a preocupação de lhe ligar de duas em duas horas para saber se estava a ser
acompanhada. À filha mentiram. Mas foi a mãe quem sofreu as consequências.
Na manhã de domingo a filha
telefona cedo para saber o estado da mãe. É-lhe dito que a mãe estava à espera
de uma maca no SO. A mãe telefona à filha instantes depois. Já se encontrava no
exterior do edifício com uma carta de alta e os pés totalmente negros de mais
uma noite sentada num cadeirão.
A filha reage. De tão sufocante,
o silêncio transforma-se em grito e ecoa. Cansada de suplicar, exige falar com
o clínico responsável. Grita ao segurança e grita ao enfermeiro. Não é a eles
dirigida a sua raiva e ela explica-lho. Exige-lhes que chamem o responsável. Não
aceita intermediários. Grita porque nada mais pode fazer. Quer explicações.
Quer compreender porquê.
Pedem-lhe que se acalme. Como se
a calma demonstrada anteriormente tivesse resultado num tratamento digno à mãe.
A filha grita porque precisa que a ouçam. A filha grita porque precisa olhar
nos olhos de quem lhe negligenciou a mãe. Chama-lhes desumanos, incompetentes,
negligentes. Mas a culpa, magana, lá vem solteira.
‘Não fui eu, foi o outro. Escreva
uma reclamação.’
E a filha grita que reclamação
nenhuma elimina a incompetência com que a mãe foi tratada. Queixa nenhuma
elimina o sofrimento e os riscos a que foi, desnecessariamente, submetida. A
filha grita e o clínico responsável agarra-a violentamente pelo braço e
arrasta-a. A filha grita ainda mais alto. Todos vêem. Todos ouvem. Mas porque
neste Interior não há “outros”, todos calam. A filha apresenta uma
queixa-crime.
‘Se não gosta do tratamento aqui
leve a sua mãe a outro lado ou trate-a em casa.’
E a filha sabe que, no Interior
do país, neste Alentejo de solidão e sol, não há “outro lado”. A filha sabe
que, por mais medíocres que sejam os meios, nem desses dispõe em casa. A filha
sabe que a mãe continuará doente e voltará a necessitar “deles”.
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