18 dezembro 2020

pessoas

A casa onde vivia com a minha mãe, o meu pai e o meu irmão tinha muitos livros nas prateleiras. Eu gostava de ler e escrever mas também de andar de bicicleta e de roubar maçanitas dos galhos das árvores que caíam para fora dos muros da horta do ‘Botas de Cigano’. Na casa da minha avó e do meu avô, do outro lado da estrada, não havia livros. Mas havia outras coisas. Uma marquise com bilhas de azeite. Melões e melancias que duravam o ano quase todo. Queijinhos e marmelada. Galinhas e ilhéus. Às vezes um casal de cabras. Borregos. Coelhos. Ao serão descascávamos favas e ervilhas. No Verão dormíamos no fresco do chão do corredor, com o postigo aberto.

No meu bairro havia muitas crianças. As que tinham pai e mãe. As que só tinham avó. As que tinham muitos irmãos. As que não tinham nenhum. As que podiam ser o que quisessem. As que não podiam ser mais do que lhes era permitido. A minha avó dava sandes de marmelada e canecas de café com leite a todas. A minha mãe dava-lhes boleia para a escola até ao limite de capacidade do nosso Subaru azul escuro, sob o compromisso de todas termos de o empurrar nas manhãs frias de Inverno.

A avó da Célia dava-nos muitas vezes o lanche. A da Alexandra deixava-nos ir para o tanque que tinha no quintal. Aos sábados de manhã, o Zé Maria e a Mariana ou a Leonor e o Eduardo levavam a vizinhança às compras ao Prisunic de Beja. O pai da Ana Lúcia e da Lígia trouxe bicicletas sob encomenda para (quase) toda a gente. Quem não tinha, esperava a sua vez de andar.

A minha tia avó que vinha de Lisboa trazia-nos os brinquedos mais modernos. A minha tia avó que vivia na vila trazia-nos as algibeiras cheias de rebuçados e chocolates. A minha tia avó que vivia em Lisboa ofereceu-me um computador portátil quando terminei a licenciatura. A minha tia avó que vivia na vila ofereceu-me as minhas primeiras seis canetas de bico de feltro.

Ao longo do meu percurso profissional e académico entrevistei ministras e secretários de Estado. Fiz teatro com a D. Alice que toda a vida guardou gado e com a D. Otília que foi professora. Dancei com o Sr. António que é pastor e com o Sr. Zé que anda à cortiça. Lanchei à da D. Lurdes. Apanhei boleia no tractor do Sr. Joaquim. Fui ao medronho com a D. Lucília. Escrevi o prefácio do livro da D. Rita. Bebi aguardente com todos eles. Dei concertos num bar nas Olhas e nas FNAC do Algarve. Subi ao palco tanto em S. Barnabé, no meio da serra, como na RTP. Almocei no João das Cabeças e jantei no Casino de Vilamoura. Gosto das migas d’A Pipa e das sopas de cação d’O Pinguinhas, em Beja. Adoro os gaspachos e as linguiças assadas da Associação Malta Dura, nos Moinhos de Vento, Almodôvar.

Talvez seja por ter aprendido tanto, com tanta gente diferente, que a crise de pensamento me custe tanto a aceitar. Parto sempre do princípio de que há quem não tenha ferramentas para ver mais do que o que a vista alcança não por opção mas por falta de oportunidade. Com base nessa premissa, e normalmente sem que tal mo seja pedido, procuro fornecer informação, indicadores, outras perspectivas que possam ajudar a abrir horizontes. A educação é a base da cidadania. Ainda que a tarefa possa ter por trás alguma arrogância e prepotência o seu motor é a tentativa – muitas vezes, vã – de tentar capacitar, no sentido de evitar que a falta de conhecimento seja limitadora da liberdade.

Há dias ousei comentar uma publicação em defesa da greve de fome que foi amplamente partilhada. Contestei o protesto, usando um conjunto de argumentos, procurando mostrar aos seus inúmeros apoiantes de outros sectores da restauração – não de luxo, não de Lisboa – a forma como não estavam a ser representados. Apenas porque me custa ver quem está desesperado a depositar esperanças num movimento que é elitista, fraudulento e ultrajante para quem, efectivamente, passa fome e se encontra em severas dificuldades.

Apesar de todas as críticas que recebi – a grande maioria em forma de ofensa –, o retorno aqueceu-me a alma. É que, para lá dos 600 sinais de apoio ao comentário, recebi pedidos de amizade e mensagens privadas de pessoas que não conheço. E todas elas tinham algo em comum – uma tremenda humanidade. Todas terminaram com um agradecimento, com um ‘bem-haja’. Todas tiveram a forma de abraço. O que saberá melhor que um abraço inesperado?

E é esta espontaneidade de afecto – tão bonita e genuína porque sem expectativas – que me restabelece o equilíbrio e reforça a esperança de um mundo melhor. É por existir este contraste que tantas vezes digo que odeio pessoas. Nada sabe melhor que levar estes doces murros no estômago.

À Nana, à Teresa, ao João, à Patrícia e a todas as outras pessoas que me fizeram chegar mensagens, O MEU OBRIGADA.

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