O amor não enche palavras. Não me dá forma aos vocábulos. Não
cria esboços em linhas. Não cabe na métrica da prosa. Não compõe textos. Não mancha, não
suja, não enegrece estas páginas.
O amor não escreve poemas. Porque não sangra, o amor não se
entende com a poesia. Fosse ele vadio! Vazio de inquietação, oco de desassossego, livre de tumultos, perde a voz. Silencia-se na virgindade do papel. Emudece. E liberta-me.
Podia hoje deixar todas as frases em branco, fantasma das
mortes vividas. (Se não voltarmos a morrer não temos futuro, já As
Intermitências da Morte sabiamente anunciava.) Hoje voltava-lhes as costas e despedia-me
delas sem culpa. Não fosse o que lhes devo e remetia-as ao abandono. Forçava-as
ao mesmo desalento de onde, tantas vezes, me retiraram.
Outrora antídoto não são hoje mais que uma rotina dolorosa
que forço, acto supremo de respeito mas deserto de conteúdo. Hoje não tenho
corpo para dar às letras. Não lhes acho alimento. Não sei como desenhá-las. Não
lhes sinto a falta. Sem veneno não lhes encontro propósito. Não lhes sei dar
ritmo ou intenção.
Insisto, rendida à teimosia maior de homenagear o hábito.
Agarro-me à memória da escuridão a perder densidade perante o ritual de levar a
caneta ao caderno mas ela foge-me. Não fosse o amor e estaria só, nesta
ausência de alma para dar à escrita.
2 comentários:
Li e reli. Confesso-me confuso. Confesso-me intrigado.
A musicalidade da escrita, presente como sempre, dispensa assinatura. Denuncia, por si só, a autoria.
Mas quem é esta Lisa Ferro que se mostra apaziguada consigo própria, com o mundo, e até, aparentemente, com o mundo dos outros; que quase se diz rendida, vencida, porque enamorada?
Que é feito da lucidez insurgente a que nos habituou, e em que nos comprazíamos porque falava em nossa vez?
Desde quando enamoramento pode ser apontado como causa de uma pretensa incapacidade em apôr a palavra na folha em branco que a espera? Acaso Pessoa, quando enamorado, suspendeu a escrita ou apaziguou o desassossego?
E que estranho amor é este, que em vez de recebido em clima de festa, nos é referido como factor de aparente desânimo? Desde quando amor deixou de ser fogo que arde sem se ver?
Amor místico não é com certeza. Fora de questão. Amor fraterno, amor filial? Então a autora logo se contradiz, à curta distância de duas madrugadas, quando nos faz cúmplices do comovente hino de amor que oferece a sua mãe como presente de aniversário. Afinal, onde estava a pretensa dificuldade em escrever, exactamente sobre um mesmo tema?
Mulher dos sete ofícios, mulher das mil e uma facetas, já como tal a conhecíamos. Mas quem é agora esta Lisa Ferro, tão cheia de contradições, logo ela, que sempre admiramos pela firmeza, pela clareza das suas posições?
Rendida ao desânimo, porque enamorada?
Mais uma vez: Que amor é este? Amor-amor, amor a valer? Então por que não afirmá-lo, por que não festejá-lo? Amor secreto? Então por quê confidenciá-lo, assim tão ambiguamente, qual jogo às escondidas? Amor impossível, porventura? Aí, não sabemos que dizer.
Ou puro exercício de estilo, súbita pulsão criadora de quem sente urgente necessidade de escrever, apenas escrever? Houve em tempos quem afirmasse que há dois tipos de escritores: os que escrevem porque têm alguma coisa para dizer, e os que escrevem porque têm de dizer alguma coisa. Ninguém, jamais, nos poderá convencer de que Lisa Ferro se terá passado para este último campo.
Li e reli. Voltei a reler. Confesso-me confuso. Confesso-me intrigado.
Mas sempre com sincera amizade.
(Responda-me, por favor, quem me puder esclarecer...)
PS: Já depois de escrito e relido,está-me a parecer, ou melhor, verifico que este meu "comentário" tem pouco ou quase nada a ver com o seu texto. Você fala de alhos, eu falo de bugalhos. Você fala, essencialmente, da angústia do criador que, temporariamente, tem uma "branca" (aliás como todos os criadores, quase sem excepção. É da História)e eu atiro-lhe com um texto paralelo, em que, de comum, só existe o facto de retomar o mote que você sugere em título. Que posso eu dizer? É o que me saiu. Na próxima vez terei mais cuidado, ou seja, tentarei ler um seu texto com mais respeito, antes de me lançar às teclas.
A um leitor que se confessa confuso e intrigado,
Não sei se será "o amor..." um texto difícil, pelo menos no que toca à leitura ou interpretação. Sei que o foi, imensamente, no acto da escrita. Talvez o amor seja o mais difícil dos estados de alma a pôr sobre o papel. E a escrita, no que a mim diz respeito, nada mais é que a necessidade intrínseca de colocar estados de alma no papel, libertando espaço para que o ar possa voltar a circular. Já Eugénio de Andrade dizia "Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me, às vezes, estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda conciliação com a vida." Os que são verdadeiramente bons neste ofício, como o caso de Andrade, encontram sempre a dose exacta de palavras para descrever aquilo que tantos outros sentem sem conseguir expressar. Dias há em que a percepção de que a escrita nada mais é que uma ferramenta que utilizo em caso de necessidade extrema me entristece. Ela merecia melhor! Merecia, por si só, ser motivo e não consequência.
Havia, antes de "o amor..." uma intenção, a tal necessidade intrínseca de "ter alguma coisa para dizer" (que pode, sim, ser confundida com o "ter de dizer alguma coisa"). Havia uma vontade maior de celebrar o amor, de exteriorizar o tal fogo que arde sem se ver. Contudo, todas as palavras se pareciam enlear umas nas outras, sem que os conceitos se chegassem a firmar. Talvez o "amor-amor" tenha destas coisas. Talvez seja maior que todas as palavras até hoje criadas pela humanidade. Talvez de tão singular não tenha como ser expresso. Daí "o amor..." cedo ter abandonado o seu intuito inicial para ganhar vida própria e se escrever a si mesmo, tornando-se uma não planeada ode à incapacidade que tal estado de alma tem em aniquilar o acessório. Perante a existência do amor ("o amor a valer") a escrita deixou de ser imprescindível. E isso só aguça a sensação de ser uma sua aproveitadora, sem lhe prestar o devido respeito. Forcei-me a tal mas não creio que tenha sido bem sucedida.
Ainda que muito mais houvesse a "discutir" sobre o assunto, por hoje fico-me por aqui.
Um abraço, com amizade,
Lisa
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