A minha avó teve sempre 68 anos.
Estou certa de que terá sido mais nova. Tenho a certeza de que ultrapassou essa
idade. Mas, no meu inconsciente de menina de franja, a minha avó tinha, todos
os dias, 68 anos.
Chamava-se Isabel. Isabel
Januária, como, às vezes, sublinho para enaltecer a tremenda falta de gosto da
minha família na escolha de segundos nomes para as suas meninas. Maria
Inocência e Emília do Sacramento de um lado. Isabel Januária, Carminda
Francisca, Antónia Júlia, Damiana Rosa do outro. Lisa Bela mesmo ao meio.
A minha avó chamava-se Isabel mas
eu chamava-lhe só avó. Para quê dar-lhe um nome se a minha avó era única? A
minha avó criou um filho, também ele único, que teve sempre duas mães. Viu-o
crescer numa planície imensamente curta para a sua grandeza. Ver-se forçada a
mandá-lo para longe deixou-lhe marcas que tempo nenhum foi capaz de sarar.
A minha avó morada na rua
principal da vila, mesmo em frente ao nosso bairro, numa casa comprida, de
quartos sufocantes, sem janelas, que desembocava num quintal de muros baixos,
onde havia um cão vadio, mas com licença e caderneta, e um casal de animais.
Viveu sempre de postigo aberto. A nossa vida era também, naquela altura, a vida
que era dos outros.
Viu nascer os dois netos com um
intervalo de onze meses. Criou-os, na preocupação silenciosa de que o mal pudesse,
um dia, chegar. Chorou a vida inteira nunca os ter visto baptizados. Criou dois
netos mas deu de comer a muitos outros que nunca tiveram avó. Papossecos com
marmelada que ela mesma fazia e canecas de café com leite. Rodilhas folhadas e
garrafas de sumo Garcia em dias de aniversário. Isostar e fatias d’ovo antes
das corridas do 25 de Abril.
Contrariamente ao meu irmão, passei
a maior parte da vida a achar que alimentar-me era um acto altamente
sobrevalorizado. A minha avó munia-se de todos os truques existentes no
universo para me fazer ingerir fosse o que fosse. E, se por milagre dos deuses,
nalgum momento eu dizia que gostava de bacalhau com pimentos assados ela
arranjava maneira de o pôr na mesa numa questão de minutos. Isso ou sopas da
panela. Ou qualquer tipo de carne, desde que me dissesse que era de um dos
nossos coelhos. Os bolos que fazíamos eram sempre de laranja. E foram sempre os
melhores bolos do mundo.
Na altura do Carnaval as irmãs
juntavam-se a ela. Preparar a época era um acto que envolvia todas as mulheres
da família. Começava-se por retirar todos os objectos dos móveis da cozinha.
Depois passavam-se vários dias a fazer recheio, a amassar, a moldar e a fritar centenas
de pastéis de grão e borrachos, que haviam de repousar em cima de qualquer
superfície plana da casa e ser, posteriormente, distribuídos por toda a
vizinhança. Lembrar-me-ei sempre da minha avó de bata e lenço na cabeça, braços
enfarinhados, a explicar-me, com um sorriso genuíno, como rechear alguns dos
pastéis com algodão, para oferecer aos vizinhos menos amigos de dar.
Normalmente, calhavam ao Zé da Alice, dono da mercearia, e ao Zé Maria da
Mariana Mota.
Em Setembro, havia um dia específico
em que madrugávamos. A minha avó pegava em mim, no meu irmão e no meu avô e lá
íamos, a pé, à feira dos queijinhos, assim que o sol nascia. A feira era só
isso – queijinhos. Bancas e bancas de queijinhos. E homens e mulheres de
navalha em punho, a dar-nos de provar. Os sacos que trazíamos haviam de durar
até ao ano seguinte.
A minha avó era uma pessoa de
medos. Havia nela um nervosismo intrínseco que nunca compreendi. O meu pai
trabalhava sempre até tarde. E ela ficava, de pé, atrás do postigo, pela madrugada
adentro, incapaz de adormecer até ouvir o carro cruzar a rua. Chorou de preocupação durante duas
semanas quando os meus pais me deixaram, aos 13 anos, ir a uma viagem a
Londres. Parte dela morreu quando nos mudámos para Beja para ficarmos mais
perto da escola para onde haveríamos de ir.
Era uma mulher de fé e quando lhe
perguntei quem era esse tal de deus disse-me que era um homem grande, que estava
em todo o lado. Ainda hoje, a única imagem que tenho de Jesus é a de um
gigante, magro e com barba, com uma perna enorme à entrada da vila e a outra junto
ao largo da cascata da Vidigueira.
A minha avó dizia que eu e o meu
irmão lhe fazíamos a cabeça em água. Todos os dias discutíamos um com o outro. Depois
uníamo-nos para discutir com ela. Ou com outra pessoa qualquer. Certa tarde de
inverno decidimos que já não queríamos ser amigos do nosso vizinho do lado.
Pegámos em todos os marcadores que tínhamos e riscámos-lhe as paredes da rua.
Guardo, com uma ponta de remorsos, a imagem da minha avó, com um lata de cal na
mão, a pintar a casa do João Paulo, à chuva, antes que a mãe dele chegasse e denunciasse a nossa decisão aos meus pais.
Com ela aprendi o significado do amor. Nunca a vi dar um beijo ou um abraço
ao meu avô, nunca os vi de mãos dadas nem a dormir na mesma cama. Ele ressonava
e ela não estava para isso. Mas ouvia-a dizer-lhe: tomara que tu vás primeiro
que eu, homem, que sem mim não te governas! E foi através desse romantismo
rude, característico das gentes do campo, que percebi que, de facto, eles se
amavam.
A minha avó dizia que o 28 era o
seu número. Nasceu em 1928, a 28 de um mês que já não recordo, casou aos 28
anos e veio a falecer a 28 de Setembro de 1999, deixando o homem sem saber como
se governar. Recuso-me a fazer contas para saber que idade tinha ao certo. A
minha avó há-de ter sempre 68 anos. E eu hei-de ter sempre saudades suas.
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