09 setembro 2015

os outros

Vejo-os de braços erguidos. Punhos cerrados. Lábios ardentes. Sedentos. A espumar pelos cantos da boca. A salivar. Erguem os braços e gritam. Uivam, de tão entorpecidos que andaram. E o ódio é ensurdecedor. E ecoa. (Agora é que é!) Palavras certas. Certezas. Porque as ouviram de alguém, que as ouviu de um outro alguém, ditas, em primeira mão, sabe-se lá bem por quem. Mas eles sabem. E a (sua) verdade é soberana. Absoluta.
 
Erguem os braços, gritam e marcham. Passo certo. Confiantes. Alinhados. Efusivos. Juntos são mais. E mais são maiores. Maiores valem mais. Rebanho domado. Exército moldado. Matilha feroz. Famintos de razão. Cegos de racionalidade. Marionetas!
 
Vejo-os de braços no ar. Agitadores. (Cães raivosos!) Propagandistas. (Palhaços!) Detentores da experiência. (Ignorantes!) Conhecedores de causa. (Idiotas!) Erguem os braços e uivam – os profetas. Patetas!
 
Envergam a verdade. Sempre a verdade. Respiram soberania. E falam dos outros. Os outros e os maus. Os outros que são os maus. E eles - que são bons (e espertos) - sabem-no. Obtusos! Ridículos!
 
E o medo. O medo que assusta. O medo que amedronta. O medo que apavora. Ai, o medo! Ai, que medo! Mas enchem o peito e lá vão, com medo e tudo, a encabeçar o pelotão dos revoltados. Cobardes!
 
Os que vão atrás não têm medo. É só receio. É receio, que é aquela coisa mais portuguesinha, de gente que nem para ter medo a sério serve. Têm receio e isso é mais que suficiente para se juntarem à causa. Antes isso do que nada. Antes isso que outra coisa qualquer. Que a época dos charlies já era e as pessoas agora querem-se é cultas. Cultas e (in)formadas. Trogloditas!
 
E é o naufrágio da humanidade partilhado até à exaustão no corpo morto de uma criança. Mas espera lá… É que, se não tivesse morrido, teria vindo cá parar. E só no Porto há uma centena de crianças a dormir na rua. Portanto, ainda bem que morreu. Ainda bem que morreu porque, passadas 48 horas, a moda já mudou e a gente tem é de se afirmar. E se é para ser que seja agora. É que o europeu de futebol ainda está longe. E nós somos Portugal. E primeiro estamos nós. E as eleições estão à porta. E o PNR mostra-nos toda a verdade. (Nenhum dos adjectivos que conheço reflecte verdadeiramente aquilo que me apetece chamar-vos. Baldes de merda fica muito aquém do desejado, acreditem!)
 
O meu pai ensinou-me o significado de liberdade. Assumi que, mesmo não concordando com determinada opinião, lutaria pelo seu direito à expressão. Hoje quebro essa promessa. E, ao quebrá-la, aproximo-me daquilo que abomino. Mas dessa aproximação ideológica tenho apenas receio. Medo - medo daquele que assusta, que amedronta, que apavora - tenho de vós, que hoje me rodeiam. Que são marionetas. Cães raivosos. Palhaços. Ignorantes. Idiotas. Patetas. Obtusos. Ridículos. Cobardes. Trogloditas. Baldes de merda. Vocês, sim - que vivem na porta ao lado, que frequentam o café da esquina, que partilharam comigo uma carteira na escola, que ouviram a mesma canção -, metem-me medo. E nojo. E repugnância. E repulsa. Para mim, são vocês os outros. E, por isso, é de vós que quero distância.

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