12 outubro 2012

tropeço


É a vida a pôr-me outra vez um pé à frente. A ferir-me outra vez as canelas, numa dor acutilante que se alastra à profundidade do corpo. É a vida a impedir-me de seguir em frente, pelo caminho a que me entreguei. A furar-me o mapa dos intuitos e das vontades. A deixar-me perder.

É a vida a fazer-me parar e repensar os passos. A obrigar-me, outra vez, a uma estagnação forçada, que sabe sempre à amargura do recuo. E eu sem trunfos para trocar as voltas ao jogo…

São os outros a apressar-me a partida, sem que eu tenha tido tempo de me habituar à chegada. São os outros a forçar-me a mudança, quando estou ainda certa de querer ficar. É o vento que sopram a arrancar-me do chão a bagagem, inibindo as raízes de crescerem.

Sou eu a questionar-me e a pôr-me em causa. Outra vez. Como se a culpa fosse parte de mim. É a impotência e o desânimo a esconderem, sem aprumo, a desilusão que me domina e atormenta. É o cheiro a injustiça a impregnar-se nas veias e nos poros. São as insónias a roubar tempo à noite. E o silêncio a enganar a revolta.

Sou eu com vergonha de mim e da minha ingenuidade. Sou eu a deixar as esperanças caídas por onde passo. E a carregar no peito um pedaço ainda maior de vazio.

05 outubro 2012

I... II...


I

Podes sussurrar-me segredos ao ouvido. Assim baixinho. Entre suspiros. Podes lançar-me palavras ocultas entre a multidão, ciente de só eu entender a sua magia. Podes revelar-me os teus intuitos. E eu conto-te, sem reticências, como me irrompeste pelos sonhos.

Fala-me de ti. E eu entrego-te a palma da mão como caminho livre para a alma. Fala-me de mim. E eu digo-te quem sou, se o quiseres saber. Lembra-me de mim para que eu não me esqueça. Contas-me histórias?

Entra sem pressas. Sou jovem. Tenho tempo e sei esperar. Entra como quiseres. Que o meu ritmo se encaixará no teu. Mas não te cales. Por favor. Não te cales. Não deixes os murmúrios passarem a silêncios. São eles que, hoje, me afastam dos abismos. São eles que, hoje, me elevam para mais perto de mim.

Podes vir como quiseres. Eu espero. Estou aqui. Com a água fervida e os grãos já moídos a cheirar ainda a quente. Com o aroma a desejo a invadir o tempo enquanto não me chamas. Já cá estou. Com os poros humedecidos a aguardar-te os lábios. Quando quiseres…


II

Sim. Eu sei que ainda não chegaste. Sim. Eu sei que não estás aqui. Mas deixa que a loucura seja ainda maior e ouve-me. Que mal fará? Deixa-me falar contigo. Deixa-me falar-te. Deixa-me dizer-te coisas banais. Deixa-me falar-te do dia. Deixa-me dizer-te que o tornaste hoje mais leve. Deixa-me falar-te das horas. Deixa-me dizer-te que foram hoje mais curtas.

Podes escutar-me no silêncio? Consegues ler-me os olhos e ouvir o que não digo? Ouves? Ouves-me?

Quero o corpo no teu colo. Só. Mesmo que aqui não estejas.

Posso falar-te do tempo e do cansaço? Do desconforto e da insónia? Da solidão e do desânimo? Posso falar-te de sonhos e fantasias? De risos, batalhas e utopias? Posso falar-te do meu mundo sem certezas densas? Posso falar-te do meu mundo de verdades estéreis? Do que me atravessa sem me tocar? Do vazio?

Posso ser sonhadora? Posso contar-te que só o que escrevo me sai da alma? Que caminho sem sombra entre os outros, anónima e indiferente? Que acredito? Que não alcanço jogos nem percebo enganos? Que alinho num hoje sem duração definida? Posso?

Deixas-me dizer-te que quero o toque dos teus dedos emaranhados no meu cabelo? Que quero sentir-te o cheiro enrolado no meu? Que tenho caos e rebuliço por dentro? Que me sabes bem, mesmo que não estejas aqui?

Posso dizer-te tudo isto e abrir-te o peito como se te conhecesse? Só hoje?

Posso ter saudades de ti sem saber quem és?

04 outubro 2012

voo


Pedi a mim mesma a mão. Leveza nos olhos e quietude nos gestos. Deixara velas espalhadas, acesas, a entoarem cânticos e a exibirem sedução na penumbra da cal. O botão preso no tempo e a música a desdobrar-se, repetitiva, em lugares comuns. Eu a envolver-me nas sombras, sem me distinguir. Eu já sem conseguir separar o princípio do fim.

Pedi a mim mesma a mão e agarrei-me a ela. Agarrei-me a ela, provocante, sedutora, libertina. Agarrei-me a mim, frágil e descuidada. Tomei-me nos braços e embalei-me, sem pressões, pudores ou vergonhas. Ri em silêncio. Tirei da pele o telhado e da alma a aparência. E dancei. Dancei. Dancei. Sozinha comigo.

Dancei comigo, sem membros presos ou vontades dormentes. Desembaracei do peito os despojos moribundos e a agonia. Despejei da mente os nós, as amarras e as mordaças. Esvaziei de mim o peso e a memória. Cuspi com ameaças os pressupostos. Abdiquei das obsessões. Retive-me no contágio dos vícios. E entreguei-me, sem vestígios de uma primeira vez.

Olhei para mim à distância, desenhada em movimentos desconexos. Vulto escravo do efémero e da demência. Enfeiticei-me. Apaixonei-me, consciente das imperfeições. Desinibi-me. Levei-me para longe, sem medo. Voei. Aceitei-me.

E depois olhei para ti, sem lá estares. Olhei para ti como se lá estivesses. Como se os meus olhos fossem os teus. Olhei para ti e tu sorrias. E eu sorria contigo, sem disfarces. E, sem o saberes, dormiste comigo uma noite inteira.

Se eu te disser que sim… Tiras-me a culpa de dentro?

02 outubro 2012

traição


Costumava escrever cartas. Escrevia-lhe cartas na ânsia quase doentia de sufocar a saudade e suprimir a distância. Falava-lhe de sonhos e da fome que urgia por dentro. Contava-lhe segredos e chorava-lhe alentos. Murmurava-lhe desejos e dava-lhe a conhecer as vontades. Revelava-lhe a vida aprisionada em caixotes e o lugar vago no lado de lá do colchão. Ia compondo promessas soltas nos silêncios que sobravam entre as linhas.

Escrevia-lhe o mundo em forma de amor. E esperava.

Depositava palavras, frenética, no papel. Via as letras mudarem de forma. As frases mudarem de sentido. O fio condutor alienar-se por caminhos virgens. Agasalhavas-lhes a rebeldia, antes de dobrar as páginas e lamber de esperança o selo no envelope.

Escrevia-lhe o mundo em forma de amor. E esperava.

Falava-lhe do pulsar do sangue, agitado, na ausência. Descrevia-lhe o ar, áspero, que corroía as entranhas na demora. Quantificava as dores mas envolvia-as sempre num tecido morno e colorido antes de as partilhar.

Dizia-lhe que as estações haviam mudado mais que uma vez. Que o sol se punha mais perto. Que a lua abalara para longe. Que as insónias estavam cansadas e a aridez exausta. Que o horizonte parecia sempre estender-se para além do que já conhecia.

Escrevia-lhe o mundo em forma de amor. E esperava.

E depois atrasava o tempo. Forçava os minutos a parar. Retinha todos os segundos. Deixava-os demorar-se, sem pressas, no sossego de um futuro improvável. Enquanto a alma entorpecia, o corpo moldava-se à solidão. Aguardavam, um dentro do outro, o amanhã que nunca chegava.

Escrevia-lhe o mundo e continuava à espera, rendida.

As fantasias haveriam por minguar. E um dia, quando a memória a atraiçoou, enganou-se no endereço. Alguém lhe viria depois a agradecer o tal mundo, narrado em tons de amor.