02 outubro 2012

traição


Costumava escrever cartas. Escrevia-lhe cartas na ânsia quase doentia de sufocar a saudade e suprimir a distância. Falava-lhe de sonhos e da fome que urgia por dentro. Contava-lhe segredos e chorava-lhe alentos. Murmurava-lhe desejos e dava-lhe a conhecer as vontades. Revelava-lhe a vida aprisionada em caixotes e o lugar vago no lado de lá do colchão. Ia compondo promessas soltas nos silêncios que sobravam entre as linhas.

Escrevia-lhe o mundo em forma de amor. E esperava.

Depositava palavras, frenética, no papel. Via as letras mudarem de forma. As frases mudarem de sentido. O fio condutor alienar-se por caminhos virgens. Agasalhavas-lhes a rebeldia, antes de dobrar as páginas e lamber de esperança o selo no envelope.

Escrevia-lhe o mundo em forma de amor. E esperava.

Falava-lhe do pulsar do sangue, agitado, na ausência. Descrevia-lhe o ar, áspero, que corroía as entranhas na demora. Quantificava as dores mas envolvia-as sempre num tecido morno e colorido antes de as partilhar.

Dizia-lhe que as estações haviam mudado mais que uma vez. Que o sol se punha mais perto. Que a lua abalara para longe. Que as insónias estavam cansadas e a aridez exausta. Que o horizonte parecia sempre estender-se para além do que já conhecia.

Escrevia-lhe o mundo em forma de amor. E esperava.

E depois atrasava o tempo. Forçava os minutos a parar. Retinha todos os segundos. Deixava-os demorar-se, sem pressas, no sossego de um futuro improvável. Enquanto a alma entorpecia, o corpo moldava-se à solidão. Aguardavam, um dentro do outro, o amanhã que nunca chegava.

Escrevia-lhe o mundo e continuava à espera, rendida.

As fantasias haveriam por minguar. E um dia, quando a memória a atraiçoou, enganou-se no endereço. Alguém lhe viria depois a agradecer o tal mundo, narrado em tons de amor.

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