07 julho 2010

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Há uma escolha a cada passo. Há uma decisão tomada a cada segundo de cada minuto de cada dia. Há um rumo que se traça a cada instante, na efemeridade de um sopro ao ouvido ou na lenta melancolia do pesar e da ponderação. Cada uma dessas rotas manipula o plano que, frenética e incautamente, vou delineando.

Num instante, ímpar, único, singular, tudo muda. Livre arbítrio, descreveria Kant na sua metafísica dos costumes.

Se estou aqui – hoje, agora, neste momento que corre à medida que a caneta se arrasta pelo papel – é porque abandonei à mercê de si mesmas todas as outras possibilidades. Escolhi a despreocupação. E foi ela que hoje me proporcionou dois agradáveis dedos de conversa com uma desconhecida septuagenária.

Ao longo deste inusitado percurso tenho escutado frases estranhas, invulgares, incomuns. Algumas, de tão absurdas, ficam-me gravadas na memória. Como as cicatrizes da infância que, com os anos, transformaram os meus joelhos num manual de brincadeiras de rua.

Um dia, ainda nas horas de uma adolescência tão apaixonada como apaixonante, um professor de filosofia, rigoroso, firme, afincadamente católico, e de meia-idade, proferiu um conjunto de palavras que não voltei a esquecer. Metaforicamente apenas me confirmaram a sua loucura crónica.

“Lisa, a única razão pela qual permito que continues a apresentar-te nas aulas com o umbigo à mostra é porque o ventre é o símbolo da procriação e da prosperidade.”

Um bocadinho despropositado, não?

Num outro dia, não muito distante deste em que escrevo, o director da empresa na qual despendo muito mais que o horário laboral telefonou-me. O tom de voz era tão doce quanto o néctar produzido pelas abelhas. Já o conteúdo…

“Lisa, as mulheres querem-se meiguinhas. Meiguinhas. Ouviu?”

Um bocadinho descabido, não?

Pobre homem que luta pela sobrevivência num mundo que já não é o seu. Parece que a esperança é mesmo a última a morrer. Lamento.

E todo este discurso para chegar à desconhecida septuagenária que me cruzou o caminho. Quando passei por ela vinha a sorrir. Dada a felicidade livre de embaraços que emanava e o olhar preso ao meu, ainda aguardei por um “bom dia”. Mas o “bom dia” não chegou. Nem o “boa tarde”. Nem o “olá”. Nem o “passou bem”. Felizmente, a indiferença também não.

Os sons que se lhe soltaram da garganta foram, no entanto, muito mais surpreendentes. Podia esperá-los de um qualquer funcionário da construção civil. De um jovem mecânico. De um velho barbeiro, até. Mas nunca de uma senhora de ar sorridente e cara de avó.

“Elá, a menina é toda boa. Anda toda descapotável, né?!”

Desculpe?

“Só não percebo por que usa essas botas parecidas às dos bombeiros. Isso não lhe aquece os pés?”

E passados alguns minutos de fortuitas justificações lá virei costas. Desta vez, era eu que sorria.

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