Tinha a alma condenada à solidão.
Tinha a alma entalada nos buracos negros que restavam entre a
partida de uns e a chegada sempre efémera de outros. Vivia de amores vadios. Só
deles se alimentava. Só a eles sucumbia. Na segura inevitabilidade de lhes ver
o fim sempre perto do início.
Fazia do asfalto combustível e da
estrada o chão morno de casa. E o caminho desdobrava-se. Desenrolava-se num tapete
movediço, de onde não se chegavam a desatar os nós. Estendia-se debaixo do solavanco
dos passos mas não trilhava rotas nem anunciava destino. Era circular na forma
e monocromático na paisagem.
Tinha a alma condenada à solidão
e só a ela se confessava. Não sabia se o frio vinha de fora se nascia já implosivo
por dentro. Às vezes tinha saudade. Tinha saudade de ter saudade. Tinha saudade
da saudade que ultrapassava a leviandade do desejo e a
fragilidade inquieta das viagens. Às vezes tinha saudade de um mundo mais perto
do seu, das suas maleitas, das suas chagas, dos seus desconsolos.
Tinha a alma
condenada à solidão, entre fugas e abalos, tentativas e erros, repetições e vácuo.
Tinha calos nos músculos e porosidade nas emoções. Tinha tecido a soltar-se
entre as andanças. Pedaços de carne que gretavam e sangravam e rangiam a cada
novo embate. Mas tinha-se a si presa a si própria nas carruagens vazias e nos
apeadeiros sombrios e desolados. Às vezes convencia-se de que lhe bastava.
Num dia de distracção
ela demorou-se na partida. Ele atrasou-se à chegada. E a dinâmica imparável do
tempo havia, por fim, cedido ao cansaço.
Se ela trazia na
bagagem a solidão ele carregava-a na palma aberta das mãos. Ela era forasteira
e vagabunda por compulsão. Ele amante e companheiro por devoção. Ela queria ver
para além do que os olhos alcançavam. Ele via para lá do que o seu olhar lhe
dizia. Se ela voltava ao passado ele trazia-lhe um presente. Se se mostrava
perdida ele recordava-lhe que acabara de ser achada. Se rasurava interrogações
ele desenhava-lhe pontos finais. Se magicava problemas ele segredava-lhe soluções. Se se vestia de silêncio ele ajeitava-lhe os trajes com melodias e
novas canções. Ela disse que talvez partisse. Ele disse que partiria com ela.
Ela ficou. Ele também.
Ela continua com
a lua pendurada no tecto do quarto. Ele com a noite entre as quatro paredes.
Mas no universo que é só deles a solidão é agora o cenário desfocado que às
vezes espreitam pela janela onde penduraram a cortina das novas descobertas.
1 comentário:
Sublime!
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