26 julho 2013

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Tinha a alma condenada à solidão. Tinha a alma entalada nos buracos negros que restavam entre a partida de uns e a chegada sempre efémera de outros. Vivia de amores vadios. Só deles se alimentava. Só a eles sucumbia. Na segura inevitabilidade de lhes ver o fim sempre perto do início.

Fazia do asfalto combustível e da estrada o chão morno de casa. E o caminho desdobrava-se. Desenrolava-se num tapete movediço, de onde não se chegavam a desatar os nós. Estendia-se debaixo do solavanco dos passos mas não trilhava rotas nem anunciava destino. Era circular na forma e monocromático na paisagem.

Tinha a alma condenada à solidão e só a ela se confessava. Não sabia se o frio vinha de fora se nascia já implosivo por dentro. Às vezes tinha saudade. Tinha saudade de ter saudade. Tinha saudade da saudade que ultrapassava a leviandade do desejo e a fragilidade inquieta das viagens. Às vezes tinha saudade de um mundo mais perto do seu, das suas maleitas, das suas chagas, dos seus desconsolos.

Tinha a alma condenada à solidão, entre fugas e abalos, tentativas e erros, repetições e vácuo. Tinha calos nos músculos e porosidade nas emoções. Tinha tecido a soltar-se entre as andanças. Pedaços de carne que gretavam e sangravam e rangiam a cada novo embate. Mas tinha-se a si presa a si própria nas carruagens vazias e nos apeadeiros sombrios e desolados. Às vezes convencia-se de que lhe bastava.

Num dia de distracção ela demorou-se na partida. Ele atrasou-se à chegada. E a dinâmica imparável do tempo havia, por fim, cedido ao cansaço.

Se ela trazia na bagagem a solidão ele carregava-a na palma aberta das mãos. Ela era forasteira e vagabunda por compulsão. Ele amante e companheiro por devoção. Ela queria ver para além do que os olhos alcançavam. Ele via para lá do que o seu olhar lhe dizia. Se ela voltava ao passado ele trazia-lhe um presente. Se se mostrava perdida ele recordava-lhe que acabara de ser achada. Se rasurava interrogações ele desenhava-lhe pontos finais. Se magicava problemas ele segredava-lhe soluções. Se se vestia de silêncio ele ajeitava-lhe os trajes com melodias e novas canções. Ela disse que talvez partisse. Ele disse que partiria com ela. Ela ficou. Ele também.

Ela continua com a lua pendurada no tecto do quarto. Ele com a noite entre as quatro paredes. Mas no universo que é só deles a solidão é agora o cenário desfocado que às vezes espreitam pela janela onde penduraram a cortina das novas descobertas.