Tenho uma criatura demente a
morder-me, esfomeada, pedaços do cérebro. A arrastar-me as ânsias para a
escuridão do abismo. A relançar-me, sem escudos ou protecção, contra um muro de
betão onde se espelham todos os meus medos. Depois puxa-me os pés e obriga-me,
dominadora, a lamber o chão. Faz de mim farrapo, bicho assustado, espantalho.
Corta-me as asas, ameaça-me, amordaça-me, enforca-me.
Tenho um cancro indomável a
corroer-me o corpo, a carcomer-me a mente, a desfazer-me de mim. E eu cedo, sem
dar luta, sem forças a que me agarrar, sem certezas de poder algum dia
vencê-lo.
Tenho-me a mim presa por um
cordel. Trago-me comigo, por pisos movediços e terrenos instáveis. Sufoco-me
dentro do que sou, mudo de forma, camaleão inconstante e incoerente. Encolho,
mirro, perco substância, emagreço por dentro, desapareço, sem saber que parte
de mim sou afinal.
Basta um click. Silencioso,
aparentemente inofensivo, imaginário. Mas corrosivo, demolidor. Que se torna
intransponível, impenetrável, inultrapassável. Que me cerca e enclausura.
Não gosto de mim quando não me
encontro. Não gosto de mim quando desapareço por entre os enigmas que me
preenchem por dentro os espaços vagos. Quando me atraiçoo em descuidos
inconscientes e irracionais. Quando sucumbo por dentro às tempestades que me
assaltam o peito.
Tenho medo. Assusto-me. E minguo.
Sou fragmento frouxo, frágil, sensível, em decomposição. Sou esquisso
inacabado, esboço constantemente incompleto. Faltam-me peças, porções, medidas
certas. Tenho bocados soltos a chocalhar nos buracos da alma. Mapa rasgado,
permeável, poroso.
Em mim não confio. Sou volátil,
solúvel. Tenho desconforto e desconsolo, vergonha e desalento a correr-me nas
veias, a sugar-me o que resta, a enregelar-me com ácido as entranhas. Tenho
sangue expulso da carne a jorrar-me pelos olhos em forma de pesadelo. Fraqueza
nos ossos a curvar-me as preces.
Sou fantasma pretensioso e arrogante, a fazer-se de
gente. Vulto vazio de conteúdo e essência. Mancha disforme e confusa. Pedra.
Estorvo. Empecilho. Vislumbre, indício, reflexo de coisa nenhuma.
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