Enfrentava-se logo pela manhã. Enchia-se de coragem e ensaiava
gestos e poses com rigor. Escondia as imperfeições do corpo, moldado a vícios e
rotinas, e fazia por realçar uma beleza juvenil que chegara tarde e teimava em
fugir depressa. Sorria, enganando o tempo e as tormentas. Depois virava-se, de um
lado e do outro. Todos os dias, durante largos minutos, antes de fechar a porta
de casa e encerrar lá dentro o que sobrava da intimidade.
Saía levemente maquilhada, confiante. Óculos escuros, a
esconder da luz as ilusões. Arranjara as unhas o melhor que podia sob a
claridade débil do candeeiro de pé baixo da sala. Pintava-as com o único verniz
que comprara, prisioneira da escolha feita tantos anos antes. Separava a roupa,
entre a pouca que tinha, com aprumo e ponderação, consoante as expectativas que
as insónias lhe desvendavam durante a noite.
Ao espelho via um reflexo volátil, que raramente a
satisfazia. Assim como os desejos da alma que só ela sabia de cor. Envergava a
farda de todos os dias. Vestia segurança por fora e embaraço por dentro. Levava
o conforto nos pés. E partia com as esperanças a chorar de fome na palma das
mãos.
Caçava sonhos nos olhos dos outros. Como os outros caçavam
nela desejos vãos. Vendia aparências com o sorriso e delírios na ausência
desgastada do olhar. Caçava sonhos nos olhos dos outros e apoderava-se deles. Atava-os
aos seus numa teia de fantasia transitória. Emaranhava-os e dava-lhes vida, seguindo
à letra o guião que nunca escrevera. O guião que, no fim, sabia nunca ser o
seu.
Fazia dos equívocos encanto. Dos temores aventura. E do desejo
magia. Fazia da busca jornada. E do amor propósito. Quando abria novamente a
porta e entrava trazia o peito vazio. Do lado de dentro era esperada, sempre com
saudade. A solidão abraçá-la-ia na nudez fria da cama a que já habituara os
ossos. E assim ficariam, aconchegadas uma na outra, a escutar as madrugadas.