Fui apagando o rasto da minha passagem. Substitui as marcas desta presença por um passado isento de vida, aquele que aqui habitava, inócuo, antes da minha chegada. Troquei os cortinados e esvaziei o roupeiro. Desfiz a cama, limpei as prateleiras, varri a varanda e esforcei-me para que as plantas não demonstrassem já o seu abandono à terra. Encaixotei o mundo inteiro. O meu. Memórias inúmeras de vivências mais ou menos gloriosas. Amores e desamores. Passado e presente no encalço de futuro incerto. Vestígios de uma história em constante ebulição.
Aprisionei romances de ficção e literatura técnica em embrulhos sólidos de plástico. Tranquei-os em caixas sem saber quando voltarão a respirar. Sempre achei que os livros não se queriam fechados. Sempre achei que deveriam ter ressequida nas páginas a maior diversidade possível de saliva e suor. Ar. Talvez para perpetuar a existência de um texto ele tenha, obrigatoriamente, de passar por mais do que um par de mãos. É mais verídica uma crença quantos mais forem os seus seguidores, parece-me.
Deixei de fora o Livro do Desassossego e o cd recém-lançado de Flajazzados. Apegos pessoais por motivos distintos. Afectividades difíceis de desenlaçar. Seguem debaixo do braço.
Embalei roupa e acessórios seleccionados. Abandonei a vil esperança de um dia voltar a ser a menina que já fui e larguei os vestidos de há anos num saco. Reprimi a tentativa, obviamente infrutífera, de ser já mulher – daquelas que se identificam à vista desarmada - e desfiz-me de todo o calçado de salto alto que em raras ocasiões se ocupou do meu ego.
Esta é a minha última noite por estas paragens. Não consigo dormir. Esforço o lento correr das horas para que o tempo me permita absorver tudo o que fica para trás.
Cresci sem dar por isso desde aquele dia nublado e chuvoso em que aqui cheguei. Fui adolescente. Arrastei uma mão cheia de sonhos. Fui estudante universitária, jornalista, empregada de balcão. Fui companheira e dona de casa. Solitária e vagabunda. Enchi a porosidade da alma de alentos e libertinagens, tatuagens sentimentais, que hoje me custam deixar.
Ergue-se já um novo dia e avizinha-se apressada uma nova viragem. As metas não simbolizam, no entanto, pontos de chegada mas sempre novos pontos de partida. Esta é apenas mais uma. Que chega ao fim ou que agora recomeça.
7 comentários:
Boa viagem Lisa. É já ali. Não é longe, nem tão pouco assustador. Um recomeço, ou melhor, um começo. Pelo prazer da descoberta já vai valer a pena.
AP
A imparável dinâmica da vida... E talvez o mais importante não sejam os locais de que gostamos mas sim as histórias que temos deles. E essas carregamo-las sempre connosco.
Obrigado.
Boa viagem Lisa. Sinto-me lisonjeado pelo que levas debaixo do braço. Abraço.
Seja bem-vindo a este poiso. E obrigado.
Abraço.
Lisa importante é que leves sempre contigo caneta e papel... as casas que são feitas de palavras não estão presas ao chão :) abraço
"Moro numa casa inacabada, feita de terra molhada, com o céu às cavalitas" (O Assobio da Cobra, Manuel Paulo).
Abraço e até breve.
Olá =)
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Alfarrobino =)
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