Não gosto de visitas. Não gosto que me batam à porta. Não gosto que me toquem à campainha. Não gosto que olhem para a minha janela. Não gosto que deixem cair coisas para a minha varanda. Não gosto dos meus vizinhos. Não gosto de gente a deambular pelo refúgio a que chamo casa. Evito-o. Afugento incessantemente essa possibilidade.
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Gosto de percorrer descalça o meu caminho. Gosto de deixar livres os pés no soalho dos meus corredores. Gosto de saltar na passagem de uma assoalhada para a outra. Gosto de correr entre o quarto e a cozinha. Gosto de tiritar de frio e de me enroscar numa manta no chão. Gosto de velas sem cheiro. Gosto de ver a trovoada e de sentir a chuva a trilhar o seu rumo por entre estas muralhas.
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Não gosto do ruído das motas na rua. Não gosto do branco sujo das paredes. Não gosto dos móveis escuros herdados pelo aluguer. Não gosto de um dos míseros quatro canais da minha televisão.
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Gosto da manteiga fora do frigorífico. Gosto de gelado de limão. Gosto de torradas. Gosto de vinho tinto e de cerveja. Gosto de coca-cola light de uma marca branca. Gosto de beber por copos altos. De comer na sala. Gosto de ter livros por todos os cantos. E de guardar as contas longe da vista.
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Não gosto de dormir de pijama. Não gosto de andar vestida. Não gosto de tapetes ou da luz frívola dos candeeiros.
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Gosto do caos que preenche a mesa de centro da sala. Gosto do acumular do computador, dos óculos, dos papéis, dos vernizes, dos cd's, do creme das mãos, dos fósforos e do tabaco de enrolar no tampo já gasto. Gosto de lhe pôr os pés em cima quando me recosto no sofá. Gosto de almofadas sempre à mão. Gosto de adormecer durante o dia. Gosto de me lembrar dos sonhos doces. Gosto dos cortinados transparentes e da janela aberta. Gosto da luz do sol a entrar de rompante ou da escuridão aconchegante das madrugadas de insónia.
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No fundo, só não gosto de gente por perto. Não gosto de pessoas no meu encalço. Talvez por temer habituar-me ao conforto da sua presença. Talvez por saber que, a seu tempo, todas partem. E eu fico. Apenas eu e esta intrínseca sensação de abandono.