Comecei
a cumprimentar a Dona Joaquina por lhe achar graça ao ar. E ela começou a
retribuir. A Dona Joaquina tem para lá de 80 anos e é costume vê-la com vagar na
esplanada da praça, sozinha e sorridente. Gosto de gente solitária e confortável
com a própria solidão.
Amiúde
pergunta se pode ganhar ar da volta e sentar-se comigo. Conta-me histórias da
miséria e do custoso que foi criar as filhas. Coube-lhe a ela. Como cabia sempre,
naquele tempo, às mulheres.
Labutou
muito. Em casa e fora dela. Penou outro tanto. Nem a fruta que caía, a
apodrecer, das árvores a patroa lhe permitia acariar. Do que rendia o trabalho
dava parte à Casa do Povo. Mas parte de pouco será sempre muito pouco para dar
alguma coisa. Hoje pede aos moços novos que passam na rua para lhe carregarem
os sacos e lá abala, calçada abaixo, rente ao passeio, a dar uso à companhia.
A
minha avó Joana nunca quis que a minha mãe lavasse no tanque ou desse baixinhos
de cal nas paredes. Como ela o havia feito. Como faziam as moças da aldeia. A vida
era para lhe correr de melhor feição. O meu avô Zé impôs à minha tia que se
livrasse de, de homem algum, apanhar as primeiras. É que as primeiras jamais
seriam órfãs. Lá em casa não se falava de feminismo. Dava-se-lhe, sem saber, o
nome de amor.
O
apartamento que comprei trazia na fechadura das portas restos do papel onde
vinham embrulhadas as chaves. Lembrei-me de todas as casas-de-banho públicas em
que entrei. Como homem, o meu companheiro tardou em perceber a analogia. Como mulher,
cedo aprendi a contornar os avanços dos espectadores indesejados.
Aos
seis anos descobri que, durante todo o Ensino Primário, não havia de utilizar uma
única vez as casas-de-banho da escola. As portas não trancavam e eu não gostava
de ter olhos alheios postos em mim. Coisas de moços!
Nos
intervalos, as meninas escapavam dos meninos que lhes queriam levantar as saias
ou dar beijinhos na boca. Eles riam. Elas fugiam e gritavam. Coisas de moços! Serenava-me
não atrair a atenção do sexo oposto. Mas aterrorizava-me a ideia de que pudesse,
dia algum, vir a ser remetida para o lugar de presa. Sem margem para posições
neutras, antes predadora.
Ouvi
o primeiro piropo quando ainda conseguia contar, pelos dedos das mãos, as voltas
da Terra sobre o Sol. Boquinha doce.
Larguei a bicicleta e fugi nauseada pelo quintal da minha avó adentro para não
voltar a ver a travessa naquela tarde de Verão. Coisas de moços!
Trazia,
na testa, o reflexo da puberdade e, no bolso, um walkman de pilhas gastas naquele
sábado em que saí do dentista. Um par de mãos a agarrar-me, na rua, o par de
mamas que mal tinha. E, por trás, o mesmo riso. Aquele riso dos meninos que
perseguem as meninas nos intervalos. A mesma satisfação. Perversa. Sádica.
Cruel. O jogo do predador e da presa. Coisas de moços!
O
meu grito, a mesma agonia. O desconforto. O incómodo. E o nojo. A raiva. A
revolta. E a vergonha. Depois, o desalento. Por fim, a quase habituação à
normalização social do assédio e da violência. Coisas de moços?
Nas
vésperas de mais um Dia Internacional da Mulher recebi a notificação de que a
queixa que apresentei contra um médico do Serviço de Urgências, que me agarrou
violentamente por um braço e me arrastou, havia sido arquivada.
De
acordo com o Ministério Público, violência que é violência tem de deixar
sequelas. Físicas. E visíveis, em exame pericial realizado volvidas mais de 48
horas. Como se, efectivamente, a alma não sentisse o que os olhos são, mais
tarde, incapazes de ver.
A narrativa
remete-me irremediavelmente para o tão enraizado Estava mesmo a pedi-las!, para o tão afamado Pôs-se a jeito!, para o tão vulgar Ela fez alguma! E lá ecoa o desculpabilizante Quem lhe manda começar a gritar com o homem?! Homem algum deve ser
publicamente enxovalhado.
Histérica!
Desequilibrada! Frustrada! Ela. Feminino.
Questiono-me
se uma médica teria tido, para comigo, a mesma postura. Deixo a dúvida pairar. Mas
tenho por certo um desfecho diferente caso a minha voz ressoasse de um corpo de
homem. Às palavras não seria associado histerismo mas agressividade. Ao
desequilíbrio chamariam insatisfação. À frustração ameaça.
A
segurança seria accionada. E eu sairia sem que braço algum me agarrasse
violentamente e arrastasse. Mas, neste jogo de poder, a estridência da minha
voz não foi intimidante o suficiente para requerer reforços ou exigir o
cumprimento do protocolo. Com esta posso
eu bem!
Até
quando serão coisas de moços?
Sem comentários:
Enviar um comentário