18 dezembro 2020

ser

Houve um dia em que estacionei em segunda fila para ir, num instante, ao quiosque comprar tabaco. Deixei o computador e a mala em cima do banco da frente mas tranquei as portas. Cruzei-me com um rapaz de “ar estranho”, que se encostou à traseira de um carro com o olhar fixo no meu.

Olhei para trás quatro vezes, desconfiada. Não uma. Não duas. Não três. Quatro vezes. Sabia que as portas estavam trancadas mas tinha o computador e a mala no banco da frente. Apressei-me a voltar. Abri a porta. Sentei-me. Olhei para o lado. E vi o rapaz de “ar estranho” a apagar o cigarro e a entrar calmamente no carro a que estava encostado – aquele a que eu tinha cortado a saída.

Senti vergonha de mim própria. Amaldiçoei esta desconfiança interna, injustificada, sistémica, estruturante, que advém do que não me é familiar. Abri o vidro e pedi desculpas. Ele sorriu e acenou. O rapaz de “ar estranho” estava apenas a deixar-me tratar dos meus afazeres, sem se preocupar que isso atrasasse os dele.

Questionei-me sobre o que terei achado estranho no seu ar e a resposta atingiu-me como um murro. Não me pareceu português!

Há tempos fiz um estudo de caracterização da população migrante de determinado concelho. Entrevistei dezenas de pessoas que deixaram os seus países em busca de uma vida melhor. Como também eu o fiz há quase uma década. No dia da primeira sessão sabia ter 23 homens de origem asiática à minha espera, em contentores isolados numa zona rural, longe da vista e das gentes. A pessoa que me deveria acompanhar falhou e eu vi-me a fazer a viagem sozinha, angustiada, hesitante, amedrontada.

Parei no caminho para fumar. Forcei-me a acalmar-me. Quando lá cheguei tremia-me a voz. Estendi a mão àquele que se apresentou como representante da comunidade e acendi outro cigarro. Os restantes só me cumprimentaram depois deste lhes dizer para o fazerem. A explicação era simples: muitos eram muçulmanos e, culturalmente, não tinham por hábito tocar em mulheres.

Era uma manhã chuvosa de Janeiro. Hora de pequeno-almoço. Perguntaram-me se queria um chá. Aceitei. Abri uma caixa de bolachas que levara comigo e partilhei-as com eles. Limparam um dos contentores para que eu pudesse sentar-me a fazer as entrevistas. Entravam dois a dois e os restantes esperavam à porta, pacientemente sem questionar. Só quando lhes disse que não precisavam de estar ao frio e à chuva é que se sentiram à vontade para entrar. Ofereceram-me uma tablete de chocolate. Contaram-me as suas histórias.

Passei dois dias com eles nos contentores. Eu e 23 homens, cuja língua eu não falava e a cultura não conhecia. Quando nos despedimos deram-me um abraço. Carregaram-me os sacos. Acompanharam-me ao carro. Cantaram. Agradeceram tê-los ouvido.

Quando voltei a casa tinha à minha espera um par de braços. Tinha o jantar ao lume e o aquecedor ligado. Dormi na segurança que conferem os laços familiares e os afectos. E isso foi o suficiente para reconhecer a minha tremenda condição de privilegiada.

Recebo mensagens todas as semanas. Perguntam por mim e pela minha família. Quando a minha mãe adoeceu telefonavam todos os dias a saber dela. Ateia, digo-lhe, às vezes, que recuperou tão depressa porque todos os migrantes que conheço rezaram por ela aos seus deuses.

O Yasir conseguiu comprar casa numa aldeia. Pediu-me ajuda para fazer os contratos da luz e da água. O Zuhaib casou e mandou-me uma fotografia da festa. O Kumar está agora na Alemanha porque até Fevereiro não há trabalho em Portugal. Deixou a agricultura e agora faz pizzas. Há-de voltar em Março. O Muhammad já conseguiu o visto de residente e mandou-me uma fotografia no momento em que o foi levantar. Diz que foi o dia mais feliz da sua vida. O Doctor já tem cá a família. Está à espera de conseguir fazer um curso de português para pedir reconhecimento de competências e voltar a exercer a profissão de dentista. O Kul tem estado doente. Eu e o meu companheiro fomos com ele ao Centro de Saúde e depois ao hospital. Já se sente melhor mas ainda não pode voltar ao trabalho. Mandou-me uma fotografia da família. Estamos convidados para o casamento da filha mais velha, em Março, no Nepal.

Recebi postais de Happy Jummah, Happy Diwali e até Feliz Natal. Hoje é Dia Internacional das Migrações. Mandei a todos uma mensagem. Mas uma mensagem não maximiza o pouco que posso fazer por eles. Uma mensagem e algum apoio não compensam a forma desumana como teimamos em tratar quem só quer uma vida melhor.

O escritor C. Douglas Lummis escreveu que as pessoas “não são iguais porque a lei natural assim decreta. Elas são iguais no sentido em que enfrentam a mesma tarefa existencial: devem viver uma vida”. Reconhecer-me, diariamente, como sendo intrinsecamente racista, xenófoba e até sexista é o primeiro passo para combater a discriminação. Tomar consciência do meu preconceito é fundamental para conseguir eliminá-lo.

pessoas

A casa onde vivia com a minha mãe, o meu pai e o meu irmão tinha muitos livros nas prateleiras. Eu gostava de ler e escrever mas também de andar de bicicleta e de roubar maçanitas dos galhos das árvores que caíam para fora dos muros da horta do ‘Botas de Cigano’. Na casa da minha avó e do meu avô, do outro lado da estrada, não havia livros. Mas havia outras coisas. Uma marquise com bilhas de azeite. Melões e melancias que duravam o ano quase todo. Queijinhos e marmelada. Galinhas e ilhéus. Às vezes um casal de cabras. Borregos. Coelhos. Ao serão descascávamos favas e ervilhas. No Verão dormíamos no fresco do chão do corredor, com o postigo aberto.

No meu bairro havia muitas crianças. As que tinham pai e mãe. As que só tinham avó. As que tinham muitos irmãos. As que não tinham nenhum. As que podiam ser o que quisessem. As que não podiam ser mais do que lhes era permitido. A minha avó dava sandes de marmelada e canecas de café com leite a todas. A minha mãe dava-lhes boleia para a escola até ao limite de capacidade do nosso Subaru azul escuro, sob o compromisso de todas termos de o empurrar nas manhãs frias de Inverno.

A avó da Célia dava-nos muitas vezes o lanche. A da Alexandra deixava-nos ir para o tanque que tinha no quintal. Aos sábados de manhã, o Zé Maria e a Mariana ou a Leonor e o Eduardo levavam a vizinhança às compras ao Prisunic de Beja. O pai da Ana Lúcia e da Lígia trouxe bicicletas sob encomenda para (quase) toda a gente. Quem não tinha, esperava a sua vez de andar.

A minha tia avó que vinha de Lisboa trazia-nos os brinquedos mais modernos. A minha tia avó que vivia na vila trazia-nos as algibeiras cheias de rebuçados e chocolates. A minha tia avó que vivia em Lisboa ofereceu-me um computador portátil quando terminei a licenciatura. A minha tia avó que vivia na vila ofereceu-me as minhas primeiras seis canetas de bico de feltro.

Ao longo do meu percurso profissional e académico entrevistei ministras e secretários de Estado. Fiz teatro com a D. Alice que toda a vida guardou gado e com a D. Otília que foi professora. Dancei com o Sr. António que é pastor e com o Sr. Zé que anda à cortiça. Lanchei à da D. Lurdes. Apanhei boleia no tractor do Sr. Joaquim. Fui ao medronho com a D. Lucília. Escrevi o prefácio do livro da D. Rita. Bebi aguardente com todos eles. Dei concertos num bar nas Olhas e nas FNAC do Algarve. Subi ao palco tanto em S. Barnabé, no meio da serra, como na RTP. Almocei no João das Cabeças e jantei no Casino de Vilamoura. Gosto das migas d’A Pipa e das sopas de cação d’O Pinguinhas, em Beja. Adoro os gaspachos e as linguiças assadas da Associação Malta Dura, nos Moinhos de Vento, Almodôvar.

Talvez seja por ter aprendido tanto, com tanta gente diferente, que a crise de pensamento me custe tanto a aceitar. Parto sempre do princípio de que há quem não tenha ferramentas para ver mais do que o que a vista alcança não por opção mas por falta de oportunidade. Com base nessa premissa, e normalmente sem que tal mo seja pedido, procuro fornecer informação, indicadores, outras perspectivas que possam ajudar a abrir horizontes. A educação é a base da cidadania. Ainda que a tarefa possa ter por trás alguma arrogância e prepotência o seu motor é a tentativa – muitas vezes, vã – de tentar capacitar, no sentido de evitar que a falta de conhecimento seja limitadora da liberdade.

Há dias ousei comentar uma publicação em defesa da greve de fome que foi amplamente partilhada. Contestei o protesto, usando um conjunto de argumentos, procurando mostrar aos seus inúmeros apoiantes de outros sectores da restauração – não de luxo, não de Lisboa – a forma como não estavam a ser representados. Apenas porque me custa ver quem está desesperado a depositar esperanças num movimento que é elitista, fraudulento e ultrajante para quem, efectivamente, passa fome e se encontra em severas dificuldades.

Apesar de todas as críticas que recebi – a grande maioria em forma de ofensa –, o retorno aqueceu-me a alma. É que, para lá dos 600 sinais de apoio ao comentário, recebi pedidos de amizade e mensagens privadas de pessoas que não conheço. E todas elas tinham algo em comum – uma tremenda humanidade. Todas terminaram com um agradecimento, com um ‘bem-haja’. Todas tiveram a forma de abraço. O que saberá melhor que um abraço inesperado?

E é esta espontaneidade de afecto – tão bonita e genuína porque sem expectativas – que me restabelece o equilíbrio e reforça a esperança de um mundo melhor. É por existir este contraste que tantas vezes digo que odeio pessoas. Nada sabe melhor que levar estes doces murros no estômago.

À Nana, à Teresa, ao João, à Patrícia e a todas as outras pessoas que me fizeram chegar mensagens, O MEU OBRIGADA.