Houve um dia em que estacionei em segunda fila para ir, num instante, ao quiosque comprar tabaco. Deixei o computador e a mala em cima do banco da frente mas tranquei as portas. Cruzei-me com um rapaz de “ar estranho”, que se encostou à traseira de um carro com o olhar fixo no meu.
Olhei para trás quatro vezes, desconfiada. Não uma. Não duas. Não três. Quatro vezes. Sabia que as portas estavam trancadas mas tinha o computador e a mala no banco da frente. Apressei-me a voltar. Abri a porta. Sentei-me. Olhei para o lado. E vi o rapaz de “ar estranho” a apagar o cigarro e a entrar calmamente no carro a que estava encostado – aquele a que eu tinha cortado a saída.
Senti vergonha de mim própria. Amaldiçoei esta desconfiança interna, injustificada, sistémica, estruturante, que advém do que não me é familiar. Abri o vidro e pedi desculpas. Ele sorriu e acenou. O rapaz de “ar estranho” estava apenas a deixar-me tratar dos meus afazeres, sem se preocupar que isso atrasasse os dele.
Questionei-me sobre o que terei achado estranho no seu ar e a resposta atingiu-me como um murro. Não me pareceu português!
Há tempos fiz um estudo de caracterização da população migrante de determinado concelho. Entrevistei dezenas de pessoas que deixaram os seus países em busca de uma vida melhor. Como também eu o fiz há quase uma década. No dia da primeira sessão sabia ter 23 homens de origem asiática à minha espera, em contentores isolados numa zona rural, longe da vista e das gentes. A pessoa que me deveria acompanhar falhou e eu vi-me a fazer a viagem sozinha, angustiada, hesitante, amedrontada.
Parei no caminho para fumar. Forcei-me a acalmar-me. Quando lá cheguei tremia-me a voz. Estendi a mão àquele que se apresentou como representante da comunidade e acendi outro cigarro. Os restantes só me cumprimentaram depois deste lhes dizer para o fazerem. A explicação era simples: muitos eram muçulmanos e, culturalmente, não tinham por hábito tocar em mulheres.
Era uma manhã chuvosa de Janeiro. Hora de pequeno-almoço. Perguntaram-me se queria um chá. Aceitei. Abri uma caixa de bolachas que levara comigo e partilhei-as com eles. Limparam um dos contentores para que eu pudesse sentar-me a fazer as entrevistas. Entravam dois a dois e os restantes esperavam à porta, pacientemente sem questionar. Só quando lhes disse que não precisavam de estar ao frio e à chuva é que se sentiram à vontade para entrar. Ofereceram-me uma tablete de chocolate. Contaram-me as suas histórias.
Passei dois dias com eles nos contentores. Eu e 23 homens, cuja língua eu não falava e a cultura não conhecia. Quando nos despedimos deram-me um abraço. Carregaram-me os sacos. Acompanharam-me ao carro. Cantaram. Agradeceram tê-los ouvido.
Quando voltei a casa tinha à minha espera um par de braços. Tinha o jantar ao lume e o aquecedor ligado. Dormi na segurança que conferem os laços familiares e os afectos. E isso foi o suficiente para reconhecer a minha tremenda condição de privilegiada.
Recebo mensagens todas as semanas. Perguntam por mim e pela minha família. Quando a minha mãe adoeceu telefonavam todos os dias a saber dela. Ateia, digo-lhe, às vezes, que recuperou tão depressa porque todos os migrantes que conheço rezaram por ela aos seus deuses.
O Yasir conseguiu comprar casa numa aldeia. Pediu-me ajuda para fazer os contratos da luz e da água. O Zuhaib casou e mandou-me uma fotografia da festa. O Kumar está agora na Alemanha porque até Fevereiro não há trabalho em Portugal. Deixou a agricultura e agora faz pizzas. Há-de voltar em Março. O Muhammad já conseguiu o visto de residente e mandou-me uma fotografia no momento em que o foi levantar. Diz que foi o dia mais feliz da sua vida. O Doctor já tem cá a família. Está à espera de conseguir fazer um curso de português para pedir reconhecimento de competências e voltar a exercer a profissão de dentista. O Kul tem estado doente. Eu e o meu companheiro fomos com ele ao Centro de Saúde e depois ao hospital. Já se sente melhor mas ainda não pode voltar ao trabalho. Mandou-me uma fotografia da família. Estamos convidados para o casamento da filha mais velha, em Março, no Nepal.
Recebi postais de Happy Jummah, Happy Diwali e até Feliz Natal. Hoje é Dia Internacional das Migrações. Mandei a todos uma mensagem. Mas uma mensagem não maximiza o pouco que posso fazer por eles. Uma mensagem e algum apoio não compensam a forma desumana como teimamos em tratar quem só quer uma vida melhor.
O escritor C. Douglas Lummis escreveu que as pessoas “não são iguais porque a lei natural assim decreta. Elas são iguais no sentido em que enfrentam a mesma tarefa existencial: devem viver uma vida”. Reconhecer-me, diariamente, como sendo intrinsecamente racista, xenófoba e até sexista é o primeiro passo para combater a discriminação. Tomar consciência do meu preconceito é fundamental para conseguir eliminá-lo.