27 novembro 2014

'O que não baila nem canta/ Por certo não sabe amar."

Chamava-se António Luís Ferro. Chamavam-lhe o jardineiro.  António Luís era meu avô.  E eu era a neta do jardineiro. Ainda hoje, nas terras que me ampararam as quedas da infância, eu sou a neta do jardineiro. Sê-lo-ei sempre entre os mais velhos.
 
- Não sabes quem é? A neta do jardineiro. Foi criada aqui com a gente. Depois abalou.
 
Nunca vi o meu avô sem ser em mangas de camisa. Nunca lhe vi as mangas arregaçadas sobre os braços. Nunca vi o meu avô dormir. Mas sei que, a par com as horas sagradas da refeição, era essa a única altura em que tirava a boina da cabeça para a pousar no tampo da cadeira, mesmo ao lado da cama. Era esse o último gesto de um dia inteiro. E o contrário, o primeiro de cada nova manhã.
 
António Luís – o jardineiro – tirou da terra uma vida inteira. Deveu à terra. Como a terra lhe deveu a ele. Acertaram contas há um par de anos. António Luís nunca tirou a carta nem teve carro de besta. Deu uma saca de melancias a um vizinho que passava na travessa e trouxe duas pasteleiras. Não me lembro de algum dia o ver pedalar. Trazia-as sempre à mão, uma de cada vez, com o fruto dos dias de trabalho. Tinha um punhado de oliveiras, alguns metros quadrados de meloal e um casal de animais. Ora dois porcos. Ora duas cabras. Ora dois borregos. Nunca mo disse mas sei que sempre soube que vida que era vida tinha de ser vivida a dois.
 
António Luís nunca andou à escola. Não sabia ler mas sabia as letras. Juntava-as todos os dias, ao final da jorna, da forma que mais sentido lhe fazia, num bloco de notas que trazia dentro da algibeira com um terço de um lápis. Um dia ofereci-lhe um lápis inteiro. Novo. Afiado. Bonito. Recusou-o. Não lhe dava jeito porque o tamanho era maior que o da carteira e da navalha.
 
António Luís viveu a vida inteira numa Vidigueira de sol, solidão e cal. Nunca viu o mar. Salvo as escassas visitas a Lisboa, pouco conheceu das estradas nacionais. Homem sábio, génio das lides que eram as suas, não creio que algum dia lhe tenha sentido a falta.
 
Sei que uma vez foi a Beja a pé, levar uma vaca doente ao veterinário. Demorou três dias. Às portas da cidade o animal deu de si. António Luís teve mais três dias de caminho para pensar naquilo que havia de dizer ao patrão.
 
O meu avô era homem de poucas falas. Também nunca o ouvi cantar. Mas sei que o fazia, na venda junto ao mercado, ao sabor do vinho do trabalho. Um alentejano nunca canta sozinho. E o meu avô não era excepção. Diz quem o ouvia que tinha boa voz. Um dia, já cansado, disse à minha avó que se queria juntar aos cantores.
 
- Estás velho. Faltam-te dentes. Vais lá agora para os cantores… Acomoda-te, homem!
 
António Luís voltou à venda, onde todos os homens haviam nascido cantores. Anos mais tarde juntou-se à terra. E a neta do jardineiro abalou.
 
Volvida uma mão cheia de meses de emigração, jantei com um amigo num restaurante argelino em Londres. Ouvi cante. Ouvi o cante numa língua que não conhecia. Ouvi talvez o cante numa das suas versões mais primitivas. Virei-me. Em vez de alentejanos dei de caras com árabes.  Mas as lágrimas vieram-me na mesma, sem vergonha, aos olhos.
 
 
Nessa noite dei comigo mais perto de casa. Nessa noite o cante voltou a ser elo entre os homens. “Dá-me uma gotinha d´água”, cantei. “Dá-me uma gotinha d’água” talvez tenham eles respondido. Não sei o que diziam as palavras. Mas a moda, essa tinha, indiscutivelmente, a mesma alma. E a alma que as gentes trazem na voz ultrapassa todas as fronteiras da terra, todos os limites do horizonte.
 
Serei sempre alentejana. Serei sempre a neta do jardineiro. E hoje, quando ao cante é atribuído o título de Património Cultural Imaterial da Humanidade, “quero cantar/ser alegre/ que a tristeza nada tem/ eu nunca vi a tristeza/ dar de comer a ninguém”.
 
 

18 novembro 2014

corja

(a propósito das intoxicações no call centre da PT em Beja)
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Trabalhar num call centre da PT é a prova maior do meu fracasso. É a imagem reflectida no espelho da minha própria derrota. Falhei. Falhei como ser humano. Falhei como profissional. Falhei como sonhadora. Falhei, principalmente, como lutadora. Mas já não é vergonha o que sinto. Até a vergonha foi substituída nesta escalada de falhanços contínuos.
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Hoje o que sinto é revolta, é repulsa, é nojo, é ódio. E esse ódio é tão profundo que todas as palavras são insuficientes para o descrever. Falhei, é um facto. Falhei comigo própria. Quanto muito falhei com aqueles que investiram em mim. Mas só a mim e aos que depositaram em mim aspirações desiludi. Agora os outros...
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Não posso culpar o mundo, que ele chegou cá primeiro que eu. Não o posso culpar porque sou eu quem está em dívida. Mas posso, sim, culpar as gentes que o governam, que o ordenam fracassado, numa escala em tudo superior à da minha insignificância. Posso, sim, culpar patrões sem escrúpulos. Posso, sim, culpar governantes sem olhos. Posso, sim, culpar, um país sem rumo, desgovernado, impune.
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Culpo, sim, quem me trata como um número. Culpo, sim, quem me controla, a vermelho, sem me comandar. Culpo, sim, quem me exige um destino sem me orientar a viagem. Culpo, sim, os filhos da puta que me escravizam, que me exploram, que me humilham.
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Culpo-os porque me fecham numa sala com centenas de seres cada vez mais desumanizados mas a enfeitam com o melhor que a tecnologia oferece. Ao menos aqui há ar condicionado! Ao menos aqui eu adoeço com o ar condicionado e não com o vento frio e a chuva. Ao menos aqui há equipamentos modernos como head sets, telefones e computadores e o contacto é indirecto! Ao menos aqui perco audição e visão com head sets, telefones e computadores e não com a voz estridente e o bafo a tabaco e café dos clientes. Ao menos aqui fazes desporto porque um elevador gasta mais que 25 frigoríficos! Ao menos aqui emagreço porque perco o tempo para comer a chegar à cantina. Ao menos aqui pagam-te! Sim, ao menos aqui pagam-me. Mal. Muito mal. E com uma parte considerável num cartão de refeição para gastar num circuito que eles, os filhos da puta, controlam. Ao menos aqui os bichos são pequenos! Sempre é melhor ser picado por piolhos de pombo do que mordida por vacas. Sempre é melhor sofrer intoxicações do que ser picada por piolhos.
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Mas hoje sinto-me também agradecida. E o agradecimento é quase do tamanho da revolta, da repulsa, do nojo e do ódio. Agradeço os 11 meses que trabalhei sem férias. Agradeço-o porque foram eles que me salvaram nos últimos dias das dezenas de intoxicações ocorridas no imponente edifício, pólo de desenvolvimento e empregabilidade na região.
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Talvez este seja, no fundo, o pensamento estratégico que é agora exigido às empresas. Ainda que trabalhadores precários, o seu despedimento em massa poderá causar uma má imagem à grandiosa PT. Mais vale matá-los, que assim não se queixam. O infortúnio é sempre mais silencioso do que a agitação. Genial.
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A pseudo-Autoridade para as Condições de Trabalho esteve no local no sábado mas no domingo as portas abriram para receber os felizes sobreviventes. Hoje a situação repetiu-se, com dezenas de internamentos, mas amanhã ou depois as portas reabrem.
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Até quando ficará esta corja impune?