Chamava-se António Luís Ferro. Chamavam-lhe o jardineiro. António Luís era meu avô. E eu era a neta do jardineiro. Ainda hoje, nas
terras que me ampararam as quedas da infância, eu sou a neta do jardineiro.
Sê-lo-ei sempre entre os mais velhos.
- Não sabes quem é? A neta do jardineiro. Foi criada aqui
com a gente. Depois abalou.
Nunca vi o meu avô sem ser em mangas de camisa. Nunca lhe vi
as mangas arregaçadas sobre os braços. Nunca vi o meu avô dormir. Mas sei que,
a par com as horas sagradas da refeição, era essa a única altura em que tirava
a boina da cabeça para a pousar no tampo da cadeira, mesmo ao lado da cama. Era
esse o último gesto de um dia inteiro. E o contrário, o primeiro de cada nova
manhã.
António Luís – o jardineiro – tirou da terra uma vida
inteira. Deveu à terra. Como a terra lhe deveu a ele. Acertaram contas há um
par de anos. António Luís nunca tirou a carta nem teve carro de besta. Deu uma
saca de melancias a um vizinho que passava na travessa e trouxe duas
pasteleiras. Não me lembro de algum dia o ver pedalar. Trazia-as sempre à mão, uma
de cada vez, com o fruto dos dias de trabalho. Tinha um punhado de oliveiras,
alguns metros quadrados de meloal e um casal de animais. Ora dois porcos. Ora
duas cabras. Ora dois borregos. Nunca mo disse mas sei que sempre soube que
vida que era vida tinha de ser vivida a dois.
António Luís nunca andou à escola. Não sabia ler mas sabia
as letras. Juntava-as todos os dias, ao final da jorna, da forma que mais
sentido lhe fazia, num bloco de notas que trazia dentro da algibeira com um
terço de um lápis. Um dia ofereci-lhe um lápis inteiro. Novo. Afiado. Bonito.
Recusou-o. Não lhe dava jeito porque o tamanho era maior que o da carteira e da
navalha.
António Luís viveu a vida inteira numa Vidigueira de sol,
solidão e cal. Nunca viu o mar. Salvo as escassas visitas a Lisboa, pouco
conheceu das estradas nacionais. Homem sábio, génio das lides que eram as suas,
não creio que algum dia lhe tenha sentido a falta.
Sei que uma vez foi a Beja a pé, levar uma vaca doente ao
veterinário. Demorou três dias. Às portas da cidade o animal deu de si. António
Luís teve mais três dias de caminho para pensar naquilo que havia de dizer ao
patrão.
O meu avô era homem de poucas falas. Também nunca o ouvi
cantar. Mas sei que o fazia, na venda junto ao mercado, ao sabor do vinho do
trabalho. Um alentejano nunca canta sozinho. E o meu avô não era excepção. Diz
quem o ouvia que tinha boa voz. Um dia, já cansado, disse à minha avó que se
queria juntar aos cantores.
- Estás velho. Faltam-te dentes. Vais lá agora para os
cantores… Acomoda-te, homem!
António Luís voltou à venda, onde todos os homens haviam
nascido cantores. Anos mais tarde juntou-se à terra. E a neta do jardineiro
abalou.
Volvida uma mão cheia de meses de emigração, jantei com um
amigo num restaurante argelino em Londres. Ouvi cante. Ouvi o cante numa língua
que não conhecia. Ouvi talvez o cante numa das suas versões mais primitivas.
Virei-me. Em vez de alentejanos dei de caras com árabes. Mas as lágrimas vieram-me na mesma, sem
vergonha, aos olhos.
Nessa noite dei comigo mais perto de casa. Nessa noite o
cante voltou a ser elo entre os homens. “Dá-me uma gotinha d´água”, cantei. “Dá-me
uma gotinha d’água” talvez tenham eles respondido. Não sei o que diziam as
palavras. Mas a moda, essa tinha, indiscutivelmente, a mesma alma. E a alma que
as gentes trazem na voz ultrapassa todas as fronteiras da terra, todos os
limites do horizonte.
Serei
sempre alentejana. Serei sempre a neta do jardineiro. E hoje, quando ao cante é
atribuído o título de Património Cultural Imaterial da Humanidade, “quero
cantar/ser alegre/ que a tristeza nada tem/ eu nunca vi a tristeza/ dar de
comer a ninguém”.