Matei de fome o monstro que me zumbia aos ouvidos e agitava o cérebro. Devo tê-lo matado
também de tristeza, inércia e desapontamento. Mas a fome foi fatal. Matei-o
várias vezes, ouso afirmar. Matei-o, por último, com determinação e empenho. O acto
exigiu preceito e a perícia dos métodos meses inteiros de aperfeiçoamento. Mas
está morto e é o que interessa. Agora ouço o silêncio.
Comecei por ficar um dia sem televisão. Não comprei o jornal. Li as manchetes nas
redes sociais. Não fiz o esforço de abrir nenhuma. Fiquei um dia sem televisão
e depois fiquei outro. E outro e outro e outro. Quanto mais dias passavam mais
natural se tornava a abstinência. Liguei-a quando deixei de lhe sentir a falta.
Os mesmos jobs
for the boys. Os mesmos boys for the jobs. Não senti nada. A crise. A contenção.
Os cortes. Nada! As greves. Os protestos. As manifestações. Qual é o motivo de
hoje? Nada! Os professores, os pais, os putos. Nada! Os sindicatos e as
associações. Nada! As aldrabices de uns ministros e as patacoadas de outros.
Nada! A injustiça. A desigualdade. A assimetria. Nada!
Não era suposto
a informação conter sempre algo de novo? E por “novo” não quero dizer “um pouco
mais”. “Um pouco mais” não é “novo”. É só “um pouco mais”. Um pouco mais de
jobs for the boys. Mais alguns boys for the jobs. Um pouco mais de crise. Um
pouco mais de contenção. Um pouco mais de cortes. Um pouco mais de greves. Mais
protestos. Mais manifestações. Mais professores, pais e putos. Mais sindicatos
e associações. Mais aldrabices. Mais patacoadas. Um pouco mais de injustiça. Um
pouco mais de desigualdade. Um pouco mais de assimetria. Vítor Gaspar nomeado
por Durão Barroso conselheiro da UE? É só um pouco mais de José Sócrates como
comentador da RTP. Elucidam-me!
Volvido um pouco
mais do mesmo, Portugal apura-se para o Mundial. Fico indignada. Mas como o
monstro já foi a enterrar só me indigno um bocadinho. O mesmo bocadinho que
dura o entusiasmo dos outros. É que há cozido de couve para o jantar. E doem-me
os dentes. E as costas. E tenho cigarros para fumar, um café para beber e uma
pessoa à espera.
Quando adormecer
vou ter pesadelos. Ainda os dentes e as costas. E as contas. E a crise. E a contenção.
E os cortes. Os meus, que não tenho cérebro para me ocupar dos dos outros.
Candidatei-me a
um concurso público antes das autárquicas. O partido manteve-se no poder mas o
concurso foi anulado logo depois. Acalma-me não ter votado nele. Alertei o
patrão para o facto de, entre o processo de revisão de texto e paginação,
alguém ter colocado gralhas num dos artigos que escrevi. Fui despedida. Só
soube quando deixei de ver o meu nome na ficha técnica. Perguntei à minha mãe por que não tinha sorte. Ela riu-se e tirou-me o peso de cima.
Quando adormecer
vou ter pesadelos. Amanhã continuo a acordar desempregada. Mas agora que o
monstro se foi não tenho força para me indignar mais. Vou só ali dormir.
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