Ela usava um vestido vermelho de
alças que lhe batia abaixo dos joelhos. Não me lembro se o
vestido de alças a bater-lhe abaixo dos joelhos era completa ou apenas
parcialmente vermelho. Sei que o vermelho era a cor principal. Sei que calçava
uns chinelos de enfiar no dedo. Sei que tinha o cabelo preto e curto. Sei que descia
o degrau único da entrada de casa. E que carregava de sacos, roupa, brinquedos e
almofadas o nosso velho Subaru azul escuro. Sei que em nenhum outro dia a minha
mãe me pareceu tão bonita. Sei que ela não sabe disso.
Sei que a noite
já ia longa e havia estrelas. Sei que a noite tinha uma longevidade apenas
atribuída à noite mais singular de cada ano. Sei que Julho ia a meio. Sei que
Agosto havia de tardar. Sei que cheirava a frescura, sem saber o que de fresco
poderá originar aquele aroma. Sei que eu e o meu irmão corríamos, eufóricos, pelo
bairro com os outros miúdos. Sei que nessa noite éramos mais amigos do que
nunca. Sei que a minha mãe estava cansada mas serena. Sei que o meu pai lia na
sala. Sei que íamos dormir à pressa, já exaustos. Sei que íamos de férias. Sei que
estávamos felizes.
Sei que os meus
avós viriam de manhã despedir-se. Sei que nos beijavam como se estivéssemos prestes
a emigrar. Sei que às vezes o Snoopy também aparecia. Sei que iríamos apanhar a
minha tia no caminho. Sei que iríamos fazer birra para decidir quem ficava com
o lugar ao meio. Sei que o meu irmão me iria vencer pelo cansaço. Sei que iria
ficar a ver a paisagem passar com o nariz colado à janela do lado direito. Sei que,
de meia em meia hora, iríamos perguntar se já estávamos perto. Sei que essas
meias horas tinham normalmente menos de trinta minutos. Sei que a estrada com
árvores nas bermas que se cruzavam no céu me fazia imaginar um mundo de
fantasia. Sei que iria enjoar na viagem. Sei que haveríamos de parar no Cercal
e que aí, sim, eu saberia que estávamos quase lá. Sei que havia sempre música
no carro.
Sei que
haveríamos de comer gelados de pistacho e de ir ao cinema Girassol. Sei que o
meu irmão levaria, todos os dias, uma cadeira e uma prancha para a praia. Sei que
eu levaria livros de banda desenhada e a minha toalha. Sei que foi em Milfontes
que o meu pai me comprou O Principezinho. Lembro-me de o ouvir dizer que
deveria ser de leitura obrigatória nas escolas. Sei que a minha mãe não
entraria na água dias a fio. Sei que os obrigávamos a levar-nos de barco à
outra margem do rio. Sei que a minha tia cortou um pé a descer, descalça, uma
falésia junto ao farol para não sujar os sapatos brancos. Sei que a sua
rebeldia me fascinava. Sei que as últimas duas semanas de Julho eram as mais
felizes das nossas vidas. Sei que Julho chegou ao fim. Sei que a última vez foi
há demasiado tempo.
Sei que Agosto
arrancou e que eu me sentei a ler no mesmo café de sempre. Sei que o rapaz parou
à minha frente e me disse que eu devia ser uma pessoa muito inteligente. Sei que
fiquei sem saber o que lhe responder. Acho que sorri.
Sei que entrou
uma menina com a mãe, que não chegou sequer a sentar-se. Sei que, de um momento
para o outro, a menina de vestido bonito abafou o som do novo disco dos Queens
of the Stone Age, perante o olhar indiferente da mãe de ar jovem, moderno e
irritante. Sei que a menina que deveria ser bonita me pareceu a criatura mais
abominável do planeta. Sei que os seus gritos ininterruptos me invadiram todo o
espaço vago do organismo, contraindo-me os músculos e rachando-me a paciência. Sei
que, pelo menos por duas vezes, os pés me incitaram a levantar-me para gritar
ofensas numa língua inventada tanto aos ouvidos da criancinha mimada como da
mãe mal-educada e má-educadora. Sei que me estragaram as últimas páginas de um
bom romance. Sei que nunca antes me apeteceu tanto bater em pessoas. Sei que
Julho terminou. Sei que amanhã vou à praia. Sei que Agosto nunca me saberá ao
mesmo.
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