12 agosto 2013

meretriz

A certeza é um bicho doente, incoerente, esquizofrénico, bipolar, demente. Não tem alma nem razão. É vagabunda, viajante, turista, passageira. É um animal assustado, que vai e vem, vai e vem, sem ficar, sem se reter, sem se deter. Cria caruncho e salitre debaixo da pele. Incha. Empola. Inflama. Esventra, esburaca e aloja-se quando chega. Arranca carne quando parte. E quando parte é sempre de repente, sem aviso prévio, sem margem de segurança que me permita proteger-me.

Deixa-me sempre abandonada. Trai-me. Chicoteia-me. Arranca-me pela raiz como a uma erva daninha. Fragiliza-me. Puxa-me o chão. Deixa-me os membros à vontade do vento e o peito entregue à tempestade. A certeza: bicho execrável. Que envenena, que embebeda, que mata lentamente, à velocidade oscilante dos seus avanços intempestivos e das fugas irracionais.
Faz-me estremecer. Traz o frio de volta às entranhas. Implanta-o, ainda embrião, e fá-lo crescer. Alimenta-o. Acaricia-o. Depois despe-me. Faz de mim esqueleto, vazio de promessas, sedento, faminto. Quando me ergo derruba-me. Quando caio pontapeia-me. Estende-me a mão, forasteira, vadia e mentirosa. Abraça-me o tronco, levanta-me o peso, faz-me levitar, para me afogar no abismo das minhas inseguranças. Uma e outra vez. Uma e outra vez. Uma. E outra vez.
Desmantela-me. Destroça-me. Arruína-me. Arreia-me as âncoras. Faz-me perder o norte, o rumo, o sentido. Comanda-me como a um fantoche. Faz de mim o que quer. Manipula-me. Possui-me. Domina-me.
A certeza: essa meretriz, prostituta, galdéria, mulher da vida. Alcoviteira. Altiva, imponente, convencida. Puta. Vendida. Que vai e vem. Vai e vem. Sem se deter.

02 agosto 2013

agosto

Ela usava um vestido vermelho de alças que lhe batia abaixo dos joelhos. Não me lembro se o vestido de alças a bater-lhe abaixo dos joelhos era completa ou apenas parcialmente vermelho. Sei que o vermelho era a cor principal. Sei que calçava uns chinelos de enfiar no dedo. Sei que tinha o cabelo preto e curto. Sei que descia o degrau único da entrada de casa. E que carregava de sacos, roupa, brinquedos e almofadas o nosso velho Subaru azul escuro. Sei que em nenhum outro dia a minha mãe me pareceu tão bonita. Sei que ela não sabe disso.

Sei que a noite já ia longa e havia estrelas. Sei que a noite tinha uma longevidade apenas atribuída à noite mais singular de cada ano. Sei que Julho ia a meio. Sei que Agosto havia de tardar. Sei que cheirava a frescura, sem saber o que de fresco poderá originar aquele aroma. Sei que eu e o meu irmão corríamos, eufóricos, pelo bairro com os outros miúdos. Sei que nessa noite éramos mais amigos do que nunca. Sei que a minha mãe estava cansada mas serena. Sei que o meu pai lia na sala. Sei que íamos dormir à pressa, já exaustos. Sei que íamos de férias. Sei que estávamos felizes.

Sei que os meus avós viriam de manhã despedir-se. Sei que nos beijavam como se estivéssemos prestes a emigrar. Sei que às vezes o Snoopy também aparecia. Sei que iríamos apanhar a minha tia no caminho. Sei que iríamos fazer birra para decidir quem ficava com o lugar ao meio. Sei que o meu irmão me iria vencer pelo cansaço. Sei que iria ficar a ver a paisagem passar com o nariz colado à janela do lado direito. Sei que, de meia em meia hora, iríamos perguntar se já estávamos perto. Sei que essas meias horas tinham normalmente menos de trinta minutos. Sei que a estrada com árvores nas bermas que se cruzavam no céu me fazia imaginar um mundo de fantasia. Sei que iria enjoar na viagem. Sei que haveríamos de parar no Cercal e que aí, sim, eu saberia que estávamos quase lá. Sei que havia sempre música no carro.

Sei que haveríamos de comer gelados de pistacho e de ir ao cinema Girassol. Sei que o meu irmão levaria, todos os dias, uma cadeira e uma prancha para a praia. Sei que eu levaria livros de banda desenhada e a minha toalha. Sei que foi em Milfontes que o meu pai me comprou O Principezinho. Lembro-me de o ouvir dizer que deveria ser de leitura obrigatória nas escolas. Sei que a minha mãe não entraria na água dias a fio. Sei que os obrigávamos a levar-nos de barco à outra margem do rio. Sei que a minha tia cortou um pé a descer, descalça, uma falésia junto ao farol para não sujar os sapatos brancos. Sei que a sua rebeldia me fascinava. Sei que as últimas duas semanas de Julho eram as mais felizes das nossas vidas. Sei que Julho chegou ao fim. Sei que a última vez foi há demasiado tempo.

Sei que Agosto arrancou e que eu me sentei a ler no mesmo café de sempre. Sei que o rapaz parou à minha frente e me disse que eu devia ser uma pessoa muito inteligente. Sei que fiquei sem saber o que lhe responder. Acho que sorri.

Sei que entrou uma menina com a mãe, que não chegou sequer a sentar-se. Sei que, de um momento para o outro, a menina de vestido bonito abafou o som do novo disco dos Queens of the Stone Age, perante o olhar indiferente da mãe de ar jovem, moderno e irritante. Sei que a menina que deveria ser bonita me pareceu a criatura mais abominável do planeta. Sei que os seus gritos ininterruptos me invadiram todo o espaço vago do organismo, contraindo-me os músculos e rachando-me a paciência. Sei que, pelo menos por duas vezes, os pés me incitaram a levantar-me para gritar ofensas numa língua inventada tanto aos ouvidos da criancinha mimada como da mãe mal-educada e má-educadora. Sei que me estragaram as últimas páginas de um bom romance. Sei que nunca antes me apeteceu tanto bater em pessoas. Sei que Julho terminou. Sei que amanhã vou à praia. Sei que Agosto nunca me saberá ao mesmo.