28 julho 2013

click

Às vezes olho para ti durante um período de tempo certo. Durante um período de tempo que tem uma dimensão exacta, precisa, perfeita, mas que não sei como contabilizar. Olho para ti entre a ausência de pressa e o desconforto da demora. E a harmonia desse instante, que não sei quantos instantes tem dentro, desconcerta-me.

Olho para ti sem te espreitar, sem te observar, sem te gastar, sem te esventrar, sem querer mais. Olho para ti só para te ver. Olho para ti porque te quero ver. Por isso olho para ti. E vejo-te. E os meus olhos gostam. E eu gosto também. 

Às vezes olho para ti e click. As fracções, que não sei se são segundos, minutos ou horas quase inteiras, rompem os parâmetros da temporalidade e apegam-se à memória já com o estatuto de fotografia. Têm margens brancas, o tamanho que vai do indicador ao polegar e notas soltas escritas a preto e à mão numa letra que não sei se é minha e cuja mensagem não decifro. Há lá algo mais juvenil que as polaroid.

Às vezes as fotografias que tenho de ti duram três passos. Às vezes duram um acorde. Às vezes duram a suspensão do ar entre uma inspiração e uma expiração. Às vezes duram o silêncio todo. Às vezes cabes nelas inteiro. Às vezes não. Em muitas estás em pedaços, esquissos, frestas, que só eu sei a que parte pertencem. Todas têm um movimento, imparável, indomesticável, infinito. Todas têm cheiro e temperatura e tonalidade e luz e sombra.

Às vezes o álbum salta-me à vista e eu olho-me de fora. Há um poial e dois copos de vinho, numa rua estreita de calçada torta mas onde o céu é maior. Há uma noite que não sei se é de primavera, se de verão fresco, se de outono morno. Há um braço sem rosto a pousar-me no ombro ao de leve e a sorrir. E eu aconchego-me. Há dois pares de olhos a sorrir-te. E há ternura e encanto e leveza e clareza. É o mundo a abanar-me os alicerces num sopro que é doce. É a criatura sem feições a piscar-me o olho e a confirmar o que a cegueira não queria que visse. É a criatura a rir-se de mim e a entregar-me o bilhete de chegada. Sou eu a abandonar, por fim, a teimosia crónica de me querer sempre errante. Brinde a nós.

26 julho 2013

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Tinha a alma condenada à solidão. Tinha a alma entalada nos buracos negros que restavam entre a partida de uns e a chegada sempre efémera de outros. Vivia de amores vadios. Só deles se alimentava. Só a eles sucumbia. Na segura inevitabilidade de lhes ver o fim sempre perto do início.

Fazia do asfalto combustível e da estrada o chão morno de casa. E o caminho desdobrava-se. Desenrolava-se num tapete movediço, de onde não se chegavam a desatar os nós. Estendia-se debaixo do solavanco dos passos mas não trilhava rotas nem anunciava destino. Era circular na forma e monocromático na paisagem.

Tinha a alma condenada à solidão e só a ela se confessava. Não sabia se o frio vinha de fora se nascia já implosivo por dentro. Às vezes tinha saudade. Tinha saudade de ter saudade. Tinha saudade da saudade que ultrapassava a leviandade do desejo e a fragilidade inquieta das viagens. Às vezes tinha saudade de um mundo mais perto do seu, das suas maleitas, das suas chagas, dos seus desconsolos.

Tinha a alma condenada à solidão, entre fugas e abalos, tentativas e erros, repetições e vácuo. Tinha calos nos músculos e porosidade nas emoções. Tinha tecido a soltar-se entre as andanças. Pedaços de carne que gretavam e sangravam e rangiam a cada novo embate. Mas tinha-se a si presa a si própria nas carruagens vazias e nos apeadeiros sombrios e desolados. Às vezes convencia-se de que lhe bastava.

Num dia de distracção ela demorou-se na partida. Ele atrasou-se à chegada. E a dinâmica imparável do tempo havia, por fim, cedido ao cansaço.

Se ela trazia na bagagem a solidão ele carregava-a na palma aberta das mãos. Ela era forasteira e vagabunda por compulsão. Ele amante e companheiro por devoção. Ela queria ver para além do que os olhos alcançavam. Ele via para lá do que o seu olhar lhe dizia. Se ela voltava ao passado ele trazia-lhe um presente. Se se mostrava perdida ele recordava-lhe que acabara de ser achada. Se rasurava interrogações ele desenhava-lhe pontos finais. Se magicava problemas ele segredava-lhe soluções. Se se vestia de silêncio ele ajeitava-lhe os trajes com melodias e novas canções. Ela disse que talvez partisse. Ele disse que partiria com ela. Ela ficou. Ele também.

Ela continua com a lua pendurada no tecto do quarto. Ele com a noite entre as quatro paredes. Mas no universo que é só deles a solidão é agora o cenário desfocado que às vezes espreitam pela janela onde penduraram a cortina das novas descobertas.