É a chuva a não saber hoje a chuva. A não ter dedos, braços
longos, passos largos. É a chuva tímida e quieta. A desfazer-se em partículas ocas
e flutuantes, sem deixar rasto. Como seria se cada uma das gotas fosse hoje de uma
cor diferente?
É o céu sem dimensão. Uma massa cinzenta de indefinições. Baço
e entediante, sem segredos para contar. Sem mistérios. É o céu despido de alma, nesta cápsula desordenada
e sufocante. É um céu disforme e impotente, que assiste apático à passagem das madrugadas.
Mas há depois o vento. O vento. Selvagem, destemido,
imparável. A envergonhar o silêncio. Senhor que clama vontades. Que grita a
fúria, a ira, a raiva. Que chora tristezas em desespero. Que chega carpindo dores, combatendo fantasmas, libertando tenções. Há o vento a esbracejar,
alvoraçado, intempestivo, em convulsão. Ruidoso. A encabeçar o motim. A liderar
os tumultos. A coordenar as tempestades.
A trovoada vem e vai, vem e vai, vem e vai, sem se deter. Oferece-se
e foge, sedutora. Diva. Brincalhona e trapaceira. Vem e vai. Como um miúdo mimado
a exigir atenção. Quando entorpece adormece e cai em esquecimento.
Há do lado de lá da moldura árvores nuas a parecer esqueletos,
que se agitam sem nexo neste baile mórbido, tardio e solitário. Calçadas sem
tecto a cruzar caminhos momentaneamente neutros. Muros sem terra a erguer
ilusões. Gente que dorme sem pressa. Gente que há-de acordar ainda adormecida.
Quando abrir de novo a janela há-de ser primavera.
Quando abrir de novo a janela há-de ser primavera.