Hei-de arrancar a alma do peito e entregá-la ao diabo, antes
que o branco deste caderno se alastre. Hei-de esventrar a carne com as minhas
próprias mãos e sustê-la com força entre os dedos sujos. Hei-de espremê-la com
fúria e vê-la desfazer-se em fragmentos mínimos com agrado. Hei-de oferecê-la,
assim mesmo, em nacos decompostos, enfermos e bolorentos. Hei-de dá-la de comer
aos demónios para que me libertem.
Hei-de pousar o coração num tronco e cortá-lo com os golpes
certeiros de um machado. Hei-de fazer dele uma pasta asquerosa e barrenta,
daquelas que se agarram, sem escrúpulos, à sola nojenta dos pés.
Hei-de fechar as tripas num saco do lixo e livrar-me delas
sem pudores ou compaixão.
Hei-de ser oca no interior e na essência, para que deus
algum me queira a seu lado. Hei-de ser estéril, árida, infértil. Hei-de ser
vazio por dentro e fantasma por fora.
Hei-de ser igual a ti, meu amor!
Hei-de sarar as chagas. Hei-de esgotar as lágrimas, as
tormentas, as maleitas, os mistérios. Hei-de ser cal. Pedra. Cinza. Hei-de voar
mais leve. Hei-de caminhar mais livre. Hei-de rir. Hei-de rir tanto ainda!
Hei-de ser muralha, pirâmide e rochedo. Hei-de ser terra e
vento e fogo. Hei-de ser tempestade e abismo. Hei-de ser dor, ferida e veneno.
Hei-de ser sal e espinho e farpa. Hei-de ser nó e forca. Hei-de ser agonia e
angustia. Hei-de ser fome e sede. E medo. Hei-de ser medo. Hei-de ser sangue e
vísceras e vermes.
Hei-de ser igual a ti, meu amor!
Hei-de ter sorriso de anjo e mãos de seda. Hei-de ser
aparência, ilusão e engano. Hei-de mentir com os olhos e matar com a boca.
Hei-de estripar entranhas, cuspir o pó, pisar os restos moribundos de nada e
embriagar-me. Hei-de embriagar-me depois. Hei-de fazer amor e gritar de prazer.
Hei-de ser pecado e pesadelo.
Hei-de ser melhor que hoje. Hei-de ter paz.
Como tu, meu amor!
6 comentários:
[Dos ódios que os amores provocam]
"A ti enchia-te eu a cara de estalos, meu paspalho.
E é com esta fúria toda que me vou embora sem sequer olhar para trás, porque se olho, paro, e se paro vou-me a ti, palhaço. Ai que raiva, ai que fúria, ai que ganas de te desfazer, de te cortar pelo picotado, de te rasgar ao meio.
Respiro fundo mas não adianta, o sossego não vem.
Cega de ódio, o que me apetece é furar-te os olhos com um picador de gelo.
E ninguém me segura, e ninguém te leva para longe da minha ira, e nem os meus passos me obedecem.
E já estou em cima de ti, encho-te a cara de estalos, paspalho, furo-te os olhos, palhaço, corto-te pelo picotado, meu merdas, rasgo-te ao meio, minha cara de papel pardo.
E não consigo acordar, nem um dedo se mexe, o despertador não toca.
E continuo a matar-te, a matar-te, a matar-te, até o pesadelo acabar."
Quando se ama e não se é amado ou quando uma relação termina e o amor fica, por vezes dói imenso tirá-lo do nosso peito. Para nos livrarmos de um sentimento que nos corrói a alma temos de enterrar um sentimento vivo. Parece que estamos a cometer um crime hediondo mas na verdade estamos a buscar algo que se pareça com salvação..
Ai, Tangerina, eu aqui com tanta frase composta quando todas as tuas palavras são certeiras. E fizeste-me rir tanto!
Mas prefiro um corta-papéis ao picador de gelo. Sei lá, tem mais a ver com palavras...
;)
Pois é, Isabel, tens toda a razão. Mas não há nada que o tempo e os amigos não curem.
Beijo Beijo
As gravitações desconhecidas que nos circundam,
as poderosas forças vitais que definem tudo quanto conhecemos,
de forma inevitável e invisivelmente atractivo,
tal como todas as nossas grandes ambições.
A inocência que nunca existiu pode ser avassaladora,
se tivermos a capacidade, a maldição, de ter essa noção
de uma forma mais completa...
Mais, sempre mais,
até que seja alcançado o absoluto, o infinitamente mais...
E depois...
Tudo pára num só momento!
As pessoas tornam-se inertes, o som transforma-se em silencio,
e apenas uma brisa... uma fresca e harmoniosa brisa,
tudo acontece em camera lenta, como se circulasse no interior
de uma redoma translucida em que o tempo seria de um domínio superior.
Tudo Vem!
Numa explosão perpétua!
A ira do vento a arrastar tudo á sua passagem, a purificar
até o mais simples, até o nada absoluto!
O equilíbrio virá novamente a ser o agora,
a calma será o estado mais puro e abrupto presente em tudo,
surgirá então de novo a vontade de mais...
Pois nunca seremos mais parte de tudo do que tudo é apenas uma parte de nós!
"A ira do vento a arrastar tudo á sua passagem, a purificar
até o mais simples, até o nada absoluto!"
Adorei esta parte. :)
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