23 março 2012

colo

Gostava de protegê-los. Gostava de resguardá-los sob o aro de um guarda-chuva gigante. Gostava de ter muitos braços. Gostava de ter muitos braços compridos. Gostava de ter dedos longos. Gostava de conseguir agarrá-los a todos ao mesmo tempo. Gostava de encostá-los ao peito. Gostava de ter ombros grandes e costas largas. Gostava de me sentar e tê-los no colo. Gostava de os aconchegar. Gostava de os embalar. Gostava de lhes pousar a mão sobre a cabeça, certa de que assim manteria longe as intempéries. Certa de que assim cessariam as torrentes e as tempestades.

Gostava que não errassem. Gostava que os erros não ferissem. Gostava que as feridas não trouxessem dor. E gostava que a dor não se arrastasse a toda a superfície da alma.

Gostava de não renunciar à imparcialidade. Gostava que o mundo se mantivesse compartimentado em gavetas, etiquetadas sem equívoco. Gostava que a linha fosse recta e o percurso linear. Gostava que as regras fossem cegas e as decisões definitivas.

Se assim fosse hoje não te ouviria chorar em desespero. Se assim fosse hoje não te veria as entranhas revolvidas e as certezas debilitadas. Se assim fosse não te sussurraria que erraste ao ouvido, assim baixinho, a medo, em tom doce e intimidado. Se assim fosse não te diria que és apenas humano e que todos os humanos cometem falhas. Se assim fosse não desejava, de forma tão ardente, que o tempo corresse depressa para que as angústias dessem lugar à dormência e essa à tranquilidade. Se assim fosse não me sentiria também eu vazia.

Parece que os afectos vão sempre roubar espaço às convenções. E ainda bem que assim é.

22 março 2012

amor

Ele era mais velho que ela algumas luas. Ela nascera num país mesmo ao lado do dele. Talvez se tenham conhecido na fronteira. Talvez ele tenha ido de férias. E ela voltado em trabalho. Talvez ele lhe tenha pedido um beijo. E talvez ela lhe tenha oferecido a vida toda.

Talvez tenha sido ao contrário.

Partilhavam juntos uma casa só com porta de entrada. Partilhavam juntos um espaço sem espaço para divisões. As cores do céu mudavam. Alteravam-se e alternavam-se de forma cíclica.

Nunca os vira juntos.

Ele vivia entre o pôr e o nascer do sol. Ela usufruía das horas que se lhe seguiam. Ou que o precediam. Encontravam-se naquele ponto de transição entre um mundo e o outro. Todos os dias.

De manhã ela compunha-se. Penteava-se. Olhava-se ao espelho. E saia. Ao entardecer ele levantava-se. E saía. Tal como acordara.

Ele caminhava sozinho sob a lua. Ria muito. Ouvia tecnho e transe. Ia a festas. Ela passeava, também sozinha, com o Sol. Sorria. E gostava de ritmos latinos.

Nunca os vira juntos. À excepção daquele dia.

Uma vez por semana ele acorda mais cedo, sai mais cedo, entre o cair e o pôr-do-sol, naquele instante em que as luzes se confundem ainda com as sombras. Uma vez por semana ele abdica de si e faz questão de a acompanhar a uma aula de dança. Faz questão de a fazer com ela. Faz questão de ouvir a música dela. Faz questão de ser o seu corpo a conduzi-la. Uma vez por semana, os seus universos caminham alinhados.

Foi nesse preciso instante que percebi que, afinal, eles se amavam mesmo.

16 março 2012

ar

E outra vez aquela claustrofobia incessante que me consome por dentro as entranhas. Que se apodera dos poros como o ar que hoje entra mais baço e pesado no vazio dos pulmões. Outra vez a aproximação ao abismo.

E outra vez aquela ansiedade mórbida que me enfraquece os membros. Que me atordoa a flexibilidade excessiva do pensar. Que me torna compulsiva e esquizofrénica. Que me envolve num silêncio fantasmagórico e assustador.

Outra vez o pulsar das vozes em sufoco. Em agonia. Em convulsão. Outra vez as vozes, múltiplas, cá dentro, a contorcerem-se. A manipularem-se. A gritarem ameaças que só se vão calando aos poucos, vãs e exaustas.

Outra vez as almas em guerra. Outra vez as mesmas almas. Outra vez neste duelo ingrato e desonesto, de onde nenhuma poderá sair vencedora.

Outra vez a necessidade de fuga. O fluxo de informação contorcida. A análise parcial e tendenciosa. Outra vez as preces que não se esgotam. Outra vez as preces que não surtem ainda efeito.

Outra vez as algemas que me deixam trôpegos os passos. Outra vez as mordaças que encerram em mim mesma os sons que já não grito. Outra vez o cansaço.

Quero o frio e a chuva a purgarem-me os medos e as ânsias que já não se escondem. Outra vez. Quero o vento a carpir-me as dores. Quero a calçada a desdobrar-se por baixo dos pés para me dar espaço. Quero ar.

Quero o meu sossego menos desassossegado. Quero o meu ruído interno mais inerte e silencioso. Quero a segurança das palavras certas. Quero lançá-las como flechas para o ponto exacto que te separa os olhos um do outro.

Quero apagado o frio que vive por dentro. Que se alastra. Que se vai expandindo. Que me mantém desperta quando quero adormecer. Que me agride quando acordo. Que me estremece.

Voltarei ao ponto de partida. Outra vez. Quando o próprio ar se esgotar nas ruas. Quando as súplicas que ecoam entre o peito e o crânio ficarem sem argumentos. Quando a exaustão roubar tempo ao conflito. Quando as pernas se cansarem de caminhar, solitárias, uma ao lado da outra para lugar nenhum. Quando os braços perderem a rigidez que os sustenta e as mãos se tornarem curtas para a profundidade dos bolsos. Quando os ombros estiverem já demasiado pesados para manterem a horizontalidade. Quando, já gasta, me fartar de ilusões e enganos. Quando, moribunda, me deixar pender. Aí, voltarei exactamente ao ponto de partida. Outra vez. Aí, voltarei a encontrar tudo precisamente igual. Como se eu não tivesse entrado. Como se não tivesse saído. Como se não tivesse entrado outra vez. Outra vez.

Mas aí, nesse instante, nesse preciso instante que apenas eu saberei que existe, estarei demasiado moída. Aí, deixarei a luta silenciosa e interna. Aí, esquecerei o abandono. Aí, cairei nos meus próprios braços. Aí, sem afectos, amparar-me-ei neles. E, no seu conforto gélido, deixarei passar. Outra vez. E fingirei que esqueço.

02 março 2012

idades

A minha mãe tem hoje 56 anos. Hoje tem precisamente o dobro da minha idade. E eu não a acho velha. Quando naquela manhã cinzenta de Setembro de 89 tirei a fotografia do meu primeiro dia de escola, no passeio em frente à casa onde vivíamos, ela tinha pouco mais de 30 anos.

Nesse dia eu vestia uma saia de ganga com peitilho e uma camisa de manga comprida com um bordado na gola. Levava a mala azul-escura e vermelha presa às costas e faltavam-me os dois dentes da frente. A franja que me caia meticulosamente sobre as sobrancelhas estava, nesse dia, presa numa fita vermelha. Eu sorria. A minha mãe e o pai sorriam.

Nessa altura eu achava que eles eram velhos. Achava que eles sabiam tudo o que havia para saber. E que, numa outra altura, quando fosse velha, eu também o saberia. Achava que eles eram velhos e sábios. Como só os velhos o são.

Quando eu tinha pouco menos que metade da idade que tenho hoje discuti com os meus pais, nessa altura já mais velhos que antes. O meu irmão ia sentado ao meu lado, em silêncio, no banco de trás do carro e eu desatei a chorar. Queria ter amigos. Soluçava. Queria ter um grupo de amigos que viesse comigo para casa e que me ajudasse a descobrir a cidade para onde me haviam mudado. Queria ter um grupo de amigos que partilhasse comigo aventuras nocturnas e esconderijos secretos. Queria amigos que não desaparecessem com o toque final do sino da escola. Queria amigos dos quais não tivesse de me despedir antes de o autocarro me entregar na última paragem. Queria amigos que partilhassem comigo a solidão.

Nesse dia, o meu pai e a minha mãe, velhos e sábios, não gritaram comigo. Não se desculparam pela minha infelicidade. Não me pediram para parar de chorar nem tentaram acalmar-me as angústias. Não remendaram a minha ausência de vida social, anestesiada apenas pelo conforto do quarto, dos livros e das cassetes de música.

Olharam os dois pelo espelho retrovisor e, com a mesma suavidade com que haviam pintado a minha infância, explicaram-me:
- Lisa, é a primeira vez que temos uma filha pré-adolescente. Como é também a primeira vez que tu tens pais com uma filha pré-adolescente. Há coisas que nós ainda não sabemos mas aos poucos havemos de lá chegar. Percebes, filha?

E nesse dia eu percebi. Afinal, eles eram mesmo velhos. E sábios.