Em Setembro de 1989 faltavam-me
os dois dentes da frente. Tinha uma franja que pousava, direitinha, mesmo acima
dos olhos. Foi assim que me apresentei no passeio em frente ao jardim de casa
para a fotografia do meu primeiro dia de aulas.
A excitação misturava-se, naquela
manhã, com uma pontada de desapontamento. Não iria ser aluna da Dona Noémia, a
velha professora que, tantos anos antes, ensinara as letras ao meu pai, naquela
mesma escola. Sucumbia à quebra de um padrão no qual acreditava residir um
certo romantismo e isso desiludira-me. Desconhecia, até ali, o tamanho da
aventura que me aguardava.
29 anos depois daquele Setembro, e
mais de 11 após o término da minha licenciatura, vi-me, em memória, no passeio
em frente ao jardim da minha casa de infância, a pousar para a mesma fotografia.
Era dia de aniversário da Dona Angelita e eu dava, novamente, os primeiros
passos numa instituição de ensino, para me matricular num mestrado. Com a
coincidência e o restabelecer de um certo padrão recuperava, quase três décadas
depois, aquela pontada de romantismo que julgava ter sido perdida.
A Dona Angelita é parte essencial
do que sou. Não me moldou o feitio. Mas derrubou barreiras, desfez perímetros e
arrasou fronteiras, criando espaço para que ele se pudesse expandir e crescesse.
A Dona Angelita tem lugar cativo no círculo restrito das minhas pessoas imprescindíveis.
E o seu posto é intransmissível.
Às vezes trocamos cartas. Partilhamos
música. Amiúde um café e dois dedos de conversa. Mas palavra alguma será capaz
de exprimir o seu impacto na formação do meu carácter e na definição dos eixos
que compõem a existência.
A Dona Angelita foi a minha
primeira professora. Foi mentora de um universo paralelo criado unicamente com
o propósito de nos fazer crescer e sonhar, sem crivos. Se, durante décadas, me
dediquei à infrutífera arte de reclamar de métodos de ensino é a ela que o
devo. Se ainda hoje recuso o acordo ortográfico é a ela que atribuo a culpa. É
que a Dona Angelita ensinou-me a pensar. Fez-me desenvolver a criatividade, a
imaginação e o sentido crítico. E foi-me difícil aceitar que, tantos anos mais
tarde, havia de me deparar com um sistema académico de formação de papagaios.
A Dona Angelita quis-nos a todos
fora do rebanho. E uma mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu
tamanho original. Não tivesse ela destapado o arco-íris e todo o meu mundo
seria diferente.
A Dona Angelita será sempre uma
referência. De carácter, de conhecimento, de humanidade, de métodos pedagógicos.
A Dona Angelita será sempre a minha professora, a minha mentora. E viverá para
sempre.
Há 29 anos arrancava naquela escola
centenária um novo programa curricular, experimental, do qual a Turma dos
Coelhinhos fazia parte. Todos os conteúdos programáticos se baseavam em produções
da própria turma, sem auxílio de qualquer manual. Isso fez-nos ler.
Desenvolveu-nos a escrita. Havia concursos literários semanais e abordagens ao
teatro. Falava-se de astronomia e de história contemporânea. Editava-se, julgo
que mensalmente, o jornal “O Balão”. A aprendizagem era prática, dinâmica, e a
avaliação focava-se não na competitividade mas na cooperação. A Dona Angelita
formava seres - humanos, pensantes, humanizados. A Dona Angelita era única. E
sempre o será.
Em 17 anos de currículo académico
tive menos de uma mão cheia de docentes a deixar-me marcas que considero
sólidas. Nenhum deles pode, contudo, ser equiparado à Dona Angelita.
Este texto surge com um dia de
atraso face ao seu aniversário e à minha matrícula num mestrado. Chega na
véspera do arranque deste novo ano lectivo. Que, à semelhança daquele Setembro
de 1989, o misto de excitação e desapontamento sejam o presságio para uma
aventura maior que o imaginável.
Por todas as emoções, que dia
algum conseguirei transpor para o papel, por esta pequena conquista (tornada
imensa perante as batalhas já travadas), o meu OBRIGADA, DONA ANGELITA.