Passaram sete dias desde os meus 34
anos certos. 33 anos e 17 dias desde que o meu pai endereçou uma carta à tia
que vivia em Lisboa a dar conta do nascimento do meu irmão. Dizia-lhe que o
mundo que me circundava se resumia a duas palavras: cão – que dirigia,
especialmente, ao recém-nascido, aos cães, gatos, galinhas e formigas - e burro
– para designar os próprios mas ainda as cabras, as ovelhas, as vacas e
qualquer objecto de maior dimensão. Papá e mamã eram, nessa altura, extensões
de mim própria.
Contava o meu pai, no seu bater
pulsante de teclas sobre a máquina de escrever que o meu avô materno trouxera
da Alemanha, que a menina já exibia um feitio digno de muitas palmadas. Aos 11
meses apresentava demasiada personalidade para um corpo ainda tão pequeno.
Curiosa. Refilona. E, acima de tudo, teimosa. Herdara, de forma somada, o pior
dos dois progenitores.
Encontrei a carta, dactilografa
há mais de três décadas e recuperada pela minha mãe após a morte da tia do meu
pai, dentro de um livro numa das pilhas junto ao sofá. E escolhi a véspera do
meu aniversário para a ler, antes de me voltar a tornar na irmã 11 meses e 13
dias mais velha.
Imaginei o meu pai debruçado
sobre o tampo de madeira da mesa da sala, à luz ténue do candeeiro, madrugada
adentro agarrado à máquina, a escrever, orgulhoso das façanhas dos filhos. E o ruído
das letras a caírem sobre o papel quebrando o silêncio da casa. Olhei para a
minha mãe e dei-lhe um abraço. E também eu me senti orgulhosa do que sou.
Aprendi com os meus pais a
distinguir os verdadeiros eixos da vida. E no dia tempestuoso em que,
contrariada, ousei pôr-me em causa, questionando os ensinamentos que me
transmitiram, foi através de uma carta, escrita à distância de 33 anos e 17
dias, que o meu pai me recordou dos mesmos. Parece que os progenitores
encontram sempre forma de nos confortar e conduzir.
A menina que, 33 anos e 17 dias
(mais os sete que entretanto passaram) depois, se curva, madrugada adentro,
sobre o computador herdou muito mais que a soma da curiosidade e da teimosia dos
genes. Herdou a sabedoria para distinguir o importante do acessório. E,
principalmente, a certeza de que se manterá fiel a si mesma. Porque há o
importante. E há o acessório.
Tornei-me 33 anos e 17 dias (mais
os sete que entretanto passaram) mais curiosa, mais refilona, mais teimosa. E
na véspera do meu trigésimo quarto aniversário lembraram-me o quão importante é
orgulhar-me disso.
Tornei-me 33 anos e 17 dias (mais
os sete que entretanto passaram) mais sonhadora, mais inconformada, mais
inadaptada. E orgulho-me disso. Porque a revolta sempre será um acto de
coragem. E a solidão é a mais sábia das companhias.
Enquanto os putos do bairro iam à
catequese para, em casa, chamarem nomes aos avós, eu inventava a tabuada do 17
e do 79 e escrevia histórias à máquina. Da mesma forma que enquanto alguns se
preocupam em tirar selfies com a banda como pano de fundo eu tento escutar a
música. Porque há o importante. E o acessório.
De um modo geral, nunca senti grande
afeição pelo ser humano. E cedo percebi que não tinha qualquer intuito de integração.
Quando o meu pai me explicou que, contrariamente a todas as regras gramaticais,
Liberdade e Amizade se deveriam sempre escrever com maiúscula percebi a
mensagem.
Gosto de gente estranha. Gosto de
gente esquisita. Gosto de gente desconfortável. Gosto de gente desequilibrada. Gosto
de gente solitária.
Gosto de sonhadores. Gosto de
curiosos. Gosto de lutadores. Gosto de rebeldes. Gosto de loucos.
Gosto de gente imprevisível.
Gosto de gente impulsiva. Gosto de gente com alma.
Gosto de gente simples na forma de estar, complexa na forma de ser. Gosto de
gente autêntica. Gosto de gente que é gente, imperfeita e genuína.
E não gosto de clichés. Não gosto
de gente-cliché. Não gosto de frases feitas. Não gosto de convenções. Não gosto de
protocolos. Não gosto de palmadinhas nas costas. Não gosto de beijos que não
tocam a cara. Não gosto de gente que goste de muita gente.
Porque gosto do importante. Não
gosto do acessório. E não há maior herança que essa.